Que coisas sabemos/Sem saber, que texto invisível lemos antes/ De vir para a vida às escondidas de nós mesmos?
Alexandre Borges, Atenção Ao Intervalo Entre O Caos E O Comboio
Alexandre Borges não precisa aqui de qualquer introdução, para além de relembrar aos leitores que ele nasceu em Angra do Heroísmo, e quando foi para Lisboa estudar, nunca esqueceria os Açores como porto de abrigo e emoções fortes. Tem já uma obra substancial em vários géneros, entre o seu trabalho de guionista para a televisão nacional, e é actualmente colaborador do Obervador, depois de ter escrito como crítico noutros jornais lisboetas. Pertence a uma nova geração de escritores açorianos que nunca deixou que Lisboa os fizesse esquecer as suas ilhas. São defensores acérrimos da nossa cultura com as suas características próprias adentro da Portugalidade, praticamente todas as suas obras fazem chamamentos constantes à sua terra natal, para além de regressos pessoais frequentes às suas ilhas de nascença. De resto, são universais, no melhor sentido da palavra, e tanto escrevem sobre nós como partem para outras realidades vividas ou imaginadas. Têm, todos eles a minha geração como referência, tal como nós tivemos os grandes nomes que nos antecederam desde Antero Quental, Vitorino Nemésio e Natália Correia. Na literatura e nas suas palavras por outros meios dão-nos a continuidade que esperamos sempre dos que nos seguem, e reafirmam assim desse modo o nosso contributo a toda a literatura de língua portuguesa, incluindo a que vem saindo da nossa Diáspora espalhada pelo mundo.
Neste seu Atenção Ao Intervalo Entre O Caos E O Comboio, o seu segundo livro de poesia, demonstra uma vez mais a sua ligação à vida de outros por ele reconstituída, ou ficcionada, tendo com centro temático e corrente de pensamento destes poemas o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), de quando em quando voltando aos Açores e ao seu passado em família. Interpreto o título deste magnífico livro como uma tirada filosófica e empírica sobre as vidas que levamos e a agonia dos nossos dias, precisamente a incerteza do que significamos num abalado mundo, e o comboio que anda sem directo ou em curvas mas sem deixar de chegar ao seu destino. É no “intervalo” entre uma experiência e outra que podemos tentar decidir o rumo das nossas vidas, e tentar ainda que a “razão” kantiana se sobreponha a tudo e todos que nos rodeiam, a geografia das terras continentais sendo nada mais que a expansão dos que iniciaram a vida em territórios como os Açores, que aliás estão aqui bem presentes. Quase todos os poemas oscilam entre o drama que é o saber intuir a nossa “realidade” com a ignorância pasmada que passa ao nosso lado, e o humor leva-nos sempre ao sorriso de quem sabe que nada mudará na condição humana. O poeta contrapõe a Kant, que levava uma vida tão organizada que, diz-se, os seus vizinhos acertavam o relógio quando ele passava pelas suas casas a passear o cão, enquanto o seu criado ou mordomo da casa, eis-militar aqui de nome Lampe, andava a passo de tropa prussiana mesmo dentro da casa, no silêncio habitual de quem não tem uma única palavra a dizer. O livro vai desde esse passado ao presente, cada poema abordando magistralmente momentos recordados e um presente, uma vez mais, de desilusão mas nunca mata o riso de estar vivo e inteiramente consciente da sua sorte, gostos e desgostos, nem sequer a nossa emigração é esquecida de modo crítico mas de imediato reconhecido por quem abandonou o seu “terreno do coração” em busca de uma outra vida qualquer, como no poema “This Is Not Américo”. Por outras palavras, trata o exílio interior de todos no seu próprio país, tal como os dele saíram, aludindo directamente a outros grandes poetas portugueses, como em “Também O Sino Da Minha Aldeia”.
O sino da minha aldeia
Continua a bater
certo ou errado
o que se acabe de fazer.
Dá as seis
Dá as sete
Não importa a que horas me deite
Nem com quem
Ou sequer se lá estou
Podes voltar a casa
depois da volta ao mundo,
Que lhe importa se é o fim de tudo
Ou segunda-feira?
O sino da minha aldeia continua a bater
da mesma maneira.
Num outro livro que acabei de ler e em que Alexandre Borges faz parte da sua coordenação, uma das pessoas, a pedido dos protagonistas de um programa que passou na nossa televisão pública, define o que acha ser-se açoriano: é “o que leva”. Poder-se-ia interpretar este sentimento ou ideia de duas maneiras: o que tem de lutar em toda a parte, ou então o transporta consigo o que é a sua cultura, o que leva consigo toda história pessoal e colectiva. Prefiro esta segunda definição de grande originalidade. Do mesmo modo, Atenção Ao Intervalo Entre O Caos E O Comboio devolve-nos o poder da grande poesia em linguagens ou versos a universalidade da pequenez territorial à vivência nas maiores metrópoles do Mundo, e aqui Lisboa é a que nos fica mais perto. O mundo é todo feito de “ilhas” cujo existencialismo aflige ou deixa saudades a uns e outros, a “força das raízes” é muito profunda, mas nunca deixamos de olhar para o horizonte e imaginar o que está no outro lado. A poesia de Alexandre Borges é esse gesto: Lisboa tem o Tejo, que nas palavras de um poeta cabo-verdiano, “leva ao mar e o mar à minha terra”. A poesia de que falamos, a de Alexandre Borges é simultaneamente narrativa e confessional, cruza tempos idos com o agora, lamenta e ri, chama a si o que cada geração enfrenta no caos ou cultiva a racionalidade de que Kant pensou e escreveu numa pequena cidade alemã, o contraste absoluto do que o seu próprio país viveria muitas décadas após a sua morte. Num destes poemas, “O Corte De Cabelo De Kant”, fala ou deixa correr a imaginação sobre a morte do grande filósofo que seria o fundador da nossa postura vivencial que perdura entre todos que absorvem as ideias antes impensáveis, e mudam o mundo e o mundo as ideias: “Imagina/coisa lamentável/ Uma coisa ridícula/De cabeça rapada/ E diziam que nunca tinha havido homem maior/ Nem eles visto morto mais seco”. Segue-se uma estrofe em que poeta exerce, como já referi, a seriedade com o mais fino humor: “Ao menos, deixem-me escolher/ Ficar ao pé talvez dum busto de Cervantes/E da máquina de pastilhas”. O poeta não viveu a ditadura política do nosso país (nasceu pouco de pois do avassalador terramoto que quase ia destruindo toda sua cidade e outros locais da Terceira), mas cresceu e viveu nas décadas do Nada que se mantêm até hoje, ouvindo música de que não gostava, fantasiando mulheres e outras andanças, já descrente em tudo que o rodeou ou rodeia. A grande literatura nasce sempre dessa tendência para introspecção, sátira, raiva e, sim, o tal humor que marcam boa parte das melhores obras portugueses, e muito acentuadamente a que parte dos autores açorianos desde sempre. Vida e morte, visto tudo com a bonomia de autor que olha para si, e recusa recolher-se a uma existência não-pensada, recusa ficar-se pelo bater do sino da sua aldeia, ou uma vida regimentada mesmo que produza uma obra imortal como a de Kant. Até com isso dá um riso entre a admiração e o desprezo. Diz ele que não acredita em deuses ou outros fantasmas da nossa tradição, o estado da humanidade sempre entre as violências físicas e mentais que as sociedades impõem a todos para melhor os aprisionar no seu caos e nos intervalos da caminhada própria ou a sós durante toda sua vida. As suas medusas, declara num outro poema, são águas-vivas “que são 99º água/ que não têm ao menos sistema digestivo/ nem excretor, nem deus, nem alma, têm a vida eterna”.
Falta só dizer que estes poemas de Atenção Ao Intervalo Entre O Caos E O Comboio é também um supremo acto de ironia bem disposta, como quase sempre na sua obra. Tenho na minha estante alguns dos seus livros de prosa, com especial destaque para Histórias Secretas De Reis Portugueses, que já vai na 5ª edição. Creio que virão outros tantos nos anos que se seguem. Este leitor agradece-lhe de nunca se esquecer do regresso ao abrigo açoriano, e depois a vigorosa escrita que segue a esses dias fora das suas lides profissionais em Lisboa. Tanto faz, o seu acto literário vai sempre dar conta do que mexe consigo e com muitos outros à sua volta.
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Alexandre Borges, Atenção Ao Intervalo Entre O Caos E O Comboio, Ponta Delgada, Edição de Nona Poesia/Nova Gráfica, 2021. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 5 de Março, 2021.