Poesia luso-americana, ou os uivos do vento

Capa Port American Poetry É com orgulho que agora adicionamos a nossa antologia à evidência inquestionável da existência de um corpo poético luso-americano.

Alice R. Clemente e George Monteiro, The Gávea-Brown Book of Portuguese-American Poetry

 /Vamberto Freitas

 O que os organizadores desta maravilhosa antologia The Gávea-Brown Book of Portuguese-American Poetry não dizem e nunca diriam, digo eu: eles são duas das figuras que, cada um a seu modo, muito têm contribuído para que esse corpo poético-literário exista já entre nós, em quantidade e sobretudo grande qualidade. George Monteiro, como é sabido, passou toda uma carreira universitária em volta de estudos anglo-americanos e luso-brasileiros, com um levantamento sistemático de tudo o que ia encontrando na escrita dos nossos descendentes na América do Norte, ele próprio poeta de largos recursos formais e temáticos, tradutor de muitos escritores e poetas lusos, inclusive dos Açores. Alice R. Clemente, do mesmo modo e a outra escala, contribui desde há anos na coordenação e dinamização (ambos juntamente com o seu outro director, Onésimo T. Almeida) da Gávea-Brown: Revista Bilingue de Letras e Estudos Luso-americanos, a primeira grande publicação periódica (Brown University) na divulgação desta escrita em todas a suas formas e géneros, a partir de 1980. Queria aqui ainda relembrar que todo este trabalho referente à criatividade luso-americana foi iniciado numa época em que poucos, dentro e fora da nossa Diáspora, acreditavam nele, ou então viravam-lhe a cara e a mente, pois não pertencia a “cânone” nenhum, não trazia “prestígio” aos que dos galões, e não da sua produção ou honestidade intelectual, fazem a sua carreira institucional ou no diáfano mundo da escrita. As minhas palavras aqui têm alguns endereços pessoais e institucionais, claro está. Entretanto, a nova geração de escritores luso-americanos aí está, e está com fulgurância, sentido de comunidade, espalhada por toda América, alguns deles formados ao mais nível e integrados em universidades que vão desde Nova Iorque e Massachusetts a Chicago e à Califórnia, outros permanecem intelectuais e escritores independentes, que se movimentam entre projectos criativos de vária ordem e publicações literárias da mais variada natureza. Todos eles ainda há pouco se sentiam isolados no vasto mosaico cultural do seu país, mas todos eles, hoje, já se encontram num grande grupo de partilha literária, todos eles, após as suas solitárias odisseias na abertura de trilhos e formas de vida, de regresso a casa, de regresso à sua ancestralidade nos dois lados do Atlântico, quer como membros das segundas e demais gerações nascidas nas nossas comunidades mais conhecidas, quer como filhos e filhas das dispersas terras portuguesas de onde saíram os seus antepassados. Não é de somenos importância que nestes anos mais recentes, alguns dessa nova geração de escritores e poetas juntam-se de quando como participantes em simpósios de línguas e literaturas, e oferecem sessões de leitura sob o nome de “Kale Soup For The Soul”, como que em gesto de lembrança da sopa de couve das suas avós, do cheiro das suas reais origens. Para quem os esperou como eu desde os meus anos da Califórnia, e pensava que simplesmente nunca apareceriam, como já tinham aparecido muitos de outros grupos étnicos daquele país, é quase como que milagroso. Para além desses encontros, alguns deles têm participado no já anual programa de escrita e estudo em Lisboa intitulado simplesmente “Disquiet/Dzanc Interantional Literary Program Lisbon”, numa homenagem a Fernando Pessoa, que será, sem dúvida alguma, a nossa influência literária mais profunda entre todos eles. Tão irónico, para mim, este seu apego ao nosso país e cultura precisamente quando sabem que estamos a cair aos bocados desde há alguns anos a esta parte. O seu contacto mútuo, as suas leituras e diálogos constantes uns com os outros de uma ponta do continente imenso à outra, assim como entre alguns deles e nós no arquipélago, assemelham-se muito ao que a minha geração de escritores açorianos viveu nos anos 70-90, o sentido de grupo, nem sempre totalmente concordante ou discordante, mas reconhecendo um chão pátrio histórico e comum, uma Tradição que nos enlaçava e enlaça. Foi dessa convivência que nasceram e duraram alguns anos os encontros de escritores açorianos dentro e fora das ilhas,

The Gávea-Brown Book of Portuguese-American Poetry é um inestimável contributo à criação em curso de um cânone literário luso-americano, já plenamente justificado pelas razões aduzidas acima. O duplo hífen aqui é por si só muitíssimo significante – para poetas e poesia de ancestralidade dupla, de múltiplos chamamentos a referenciais geográficos, humanos e histórico-literários, uma publicação do mesmo modo ligada intimamente aos mundos das línguas portuguesa e inglesa ao mais alto nível universitário é o meio ideal de os apresentar ou reapresentar, e disseminar as melhores mostras das sua obra. Só Alice R. Clemente e George Monteiro, permitam-me repeti-lo, seriam capazes de tal tarefa pelo seu conhecimento acumulado no decorrer dos anos e trabalho, pela sua capacidade de investigação, persistência e crença puramente intelectual em tal projecto, que não meramente lealdade étnica ou duplamente nacional. Estão nestas páginas várias gerações de luso-descendentes, com a excepção de Alfred Lewis, que nasceu nas Flores, mas depois na Califórnia escreveu nas suas duas línguas. A mais antiga, Emma Lazarus (1849-1887), descendente dos primeiros judeus portugueses na América, e hoje talvez a figura mais famosa desta antologia por uma razão ainda mais distinta, o seu talento tendo sido reconhecido já pelo próprio filósofo e sábio Ralph Waldo Emerson: são da autoria dela as famosas palavras poéticas colocadas numa placa de bronze aos pés da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, as que imploram ao restante mundo que mande para a América o povo sem vida nem futuro em terras antigas. Outros presentes neste volume são jovens poetas, como Millicent Borges Accardi e Carlo Matos. Entre estes, estão todos os nomes incontornáveis, uns naturalmente mais conhecidos do que outros, como Frank X. Gaspar, o próprio George Monteiro, Sam Pereira, Nancy Vieira Couto e Lara Gularte. Não é a minha intenção fazer uma listagem completa aqui (para isso existe a antologia), mas sim dar uma ideia de quanta bela poesia está incluída neste livro, agora fundamental para estudiosos e todos os que lêem a boa poesia sem mais qualificações, inclusive, inevitavelmente neste caso, a que referencia alguma da nossa marcante experiência de vida durante mais de um século num contexto de uma nação multiétnica e multicultural, como são os Estados Unidos. Assim mesmo, os organizadores deste livro esclarecem logo de início que as suas escolhas aqui presentes não obedeceram em primeiro lugar à temática de se ser português ou luso-descendente naquele país, mas sim pura e simplesmente à qualidade estética de cada poema, ou do conjunto de poemas de cada autor.

“Desde o início, – escrevem Clemente e Monteiro na introdução às páginas que se seguem – decidimos que a nossa selecção da poesia escrita por luso-americanos seria guiada pela sua estética em vez de por um critério cultural… Enquanto incluirá poemas sobre temas luso-americanos, o primeiro critério para a sua presença aqui é que os poemas eles próprios – para além do seu assunto ou temática – sejam da mais alta qualidade estética. Estamos perfeitamente conscientes de que a obra poética de luso-descendentes pertence à tradição da melhor poesia americana”.

Com a publicação de The Gávea-Brown Book of Portuguese-American Poetry, a primeira e grande proposta (quer tenha sido essa a intenção ou não de Alice R. Clemente e George Monteiro) de cânone da literatura luso-americana fica completo ao juntarmos-lhe a antologia de prosa Luso-American Literature: Writings by Portuguese-Speaking Authors in North America, de Robert Henry Moser e António Luciano de Andrade Tosta.

Não é pouco, acreditem. Enquanto o ensino da literatura a nível superior em Portugal, e especialmente nos Açores, definhou quase por completo, chegam-nos estes actos de grandeza humanística e artística, esta reconfirmação de que a literatura é tanto um acto estético como o mais firme e duradouro repositório da memória colectiva de um povo, a reafirmação, acima de tudo, de identidades fluidas de um povo que sobrevive e vence em qualquer lugar e circunstâncias históricas. São estes, pois, os uivos do vento, como no título de um dos poemas aqui contidos, que chegam do longe. Muito mais rica e serenamente, ao que parece, do que em casa própria.

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The Gávea-Brown Book of Portuguese-American Poetry, Edited by Alice R. Clemente and George Monteiro, Providence, Rhode Island, Gávea-Brown Publications (Brown University), 2012. As traduções aqui são da minha responsabilidade.

One thought on “Poesia luso-americana, ou os uivos do vento

  1. Millicent Abril 14, 2013 / 11:24 pm

    Honored to be mentioned!!! I’m proud to be in the Gavea-Brown anthology, alongside so many wonderful poets. There will be a Kale Soup reading at the Mass Poetry Festival in May.

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