Dereck Wolcott

Tenho sentido sempre desde a adolescência que eu só tinha uma missão, e isso era articular, de um modo ou outro, não a minha experiência pessoal, mas sim o que eu via à minha volta.

Derek Walcott, The Paris Review Interviews

 

Vamberto Freitas

Derek Walcott poderá não ser muito conhecido entre nós, fora de certos círculos literários no país, mas não se trata de um poeta qualquer de língua inglesa Vindo de uma tradição histórica e culturalmente dupla, nasceu em 1930 e viveu a maior da sua vida na ilha de Santa Lúcia, em que Cristóvão Colombo tropeçou em 1502, e que mais tarde viria a ser colonizada pelos ingleses. De descendência afro-caribenha, Walcott cedo se dedicou aos estudos, muito particularmente às duas formas literárias que cultivaria brilhantemente toda a sua vida, até hoje – poesia e teatro, como autor, e dinamizador e encenador de um grupo por ele constituído na ilha durante dezassete anos. A família imediata do poeta foi sempre muito reduzida (o pai faleceu antes da sua nascença, mas deixou-lhe sinais da sua sensibilidade artística em quadros por ele pintados), consistia de sua mãe, professora, e de um irmão gémeo e uma irmã. A sua exímia educação e formação numa casa financeiramente humilde, à época, passou logo para os seus primeiros anos de escola, onde eventualmente tomaria conhecimento de poetas, hoje clássicos, como T. S. Eliot, W. H. Auden e Dylan Thomas. Aos dezanove anos apresentava uma colectânea de poemas à mãe, que lhe deu o dinheiro para viajar até à ilha vizinha de Trindade, e custear a publicação do seu primeiro livro, intitulado simplesmente 25 Poems, pela mão e depois das palavras elogiosas do editor de uma pioneira revista literária naquelas ilhas (Bim), de nome Edward Braithwaite. Antes disso, aos catorze anos de idade, publicara num jornal local o seu primeiro poema, “The Voice of St. Lucia/A Voz de Santa Lúcia”, despoletando logo uma polémica de cariz religioso (Walcott pertencia a uma minoria protestante num meio maioritariamente católico) com um padre local. Estes são apenas detalhes daquele que viria a ser um grande poeta do mundo, ou de como de uma pequena ilha que mais não tinha do que turistas americanos a gozar as praias locais, sem quaisquer apoios, longe de todos os centros tradicionais de movimentação literária e académica, acaba por receber em 1992 o Prémio Nobel da Literatura. Diremos, por agora, que para além da sua grandeza pessoal como poeta ou homem da literatura em geral, teria uma única mas grande vantagem sobre tantos outros em situação geográfica comparável: fala e escreve em língua inglesa. Não é propriamente sobre esses factos ou fatalidades que me motivam estas linhas, mas sim rebater a noção muito prevalecente entre nós de que ser-se “universalista” ou “cosmopolita”, ou “escritor do mundo” requer certas condições ou “atitudes” ante a vida observada e depois descrita, comentada ou meditada – sem nunca ser vivida. Walcott, tal como, por exemplo, um outro Prémio Nobel de condições semelhantes, Gabriel Garcia Márquez, é esse paradigma de perfeita honestidade intelectual e literária, da capacidade de verter qualquer situação ou tradição, por mais desconhecida que seja por parte de outros, em arte, em literatura que chega e comove o mais íntimo dos seus leitores em toda a parte, no original ou mesmo em tradução.

Tudo isto vem a propósito de uma releitura que fiz recentemente da grande entrevista que Derek Walcott concedeu à The Paris Review, nos idos de 1985. Estava a sete anos do Nobel, mas ser entrevistado pela dita publicação é um outro feito de que poucos escritores se podem gabar. Não me vou repetir, mas volto a afirmar que ter um lugar naquela famosa e cobiçada secção da revista resulta de imediato num estatuto literário muito próprio no mundo anglo-saxónico – ou já se é um autor canónico, ou vai passar a sê-lo. A chamada legitimação de uma obra pode vir da academia antes ou depois dessa presença na publicação nova-iorquina, só que agora com uma vantagem inegável. O autor não só vê o seu prestígio confirmado, como alarga consideravelmente o leque de leitores sérios em toda a parte. Na longa conversa que Walcott travou então com Edward Hirsch (este também um poeta reconhecido) à beira do transparente mar azul em contraste com uma realidade humana pouco desejável no outro lado devido à sua pobreza e condições afins, aborda um pouco de tudo, mas o que me interessa aqui é o ponto de partida consistente que Hirsch explora no diálogo com o seu colega. Se Walcott é de uma ilha, e nela vive sempre por entre as suas estadias no estrangeiro como professor e escritor; se é filho de uma geografia e de uma história específicas que valem por igual no rumo da sua gente, o que “sente” o poeta, como se posiciona o poeta ante esse seu destino, e esse seu passado e presente? Assume por inteiro esse seu destino, responde Walcott, chama-o a si, denuncia-o, acarinha-o, não pode nem quer escapar do território que moldou o seu ser, que o viu nascer, e que em si alberga os que lhe são outros significantes. “Abandonar – diz a dada altura ao seu interlocutor a propósito dos seus sentimentos e das suas “convicções” da lealdade de poeta andarilho após a fama que já era sua mesmo antes de ser premiado ao mais alto nível — essa a minha convicção seria trair as minhas origens; seria sentir superioridade em relação à família, ao passado. E não sou capaz disso”.

É certo que para além da poesia inglesa clássica, as suas grandes referências passaram a ser também alguns dos grandes escritores sulistas norte-americanos (em comum, uma história esclavagista, da qual ninguém escapou na realidade e na memória) como William Faulkner assim como inúmeros outros nomes da literatura europeia e latino-americana. Derek Walcott, ao falar da realidade da ilha e como ela penetra quase toda a sua poesia, cita dois poderosas autores europeus originários, como ele, de um passado colonialista britânico, precisamente William Butler Yeats e James Joyce. Fala da noção de como o universalismo está no lado de fora da nossa porta, por assim dizer, e de como a grande arte transfigura um referencial de poucos metros quadrados em metáforas do mundo e da humanidade em geral. Estamos perante um poeta a criar a sua própria tradição, a oferecer às gerações vindouras o palco montado para que possam prosseguir nos seus sonhos artísticos (Walcott também se dedica à pintura, tal como fazia seu pai, ainda hoje referindo os grandes mestres nalguns dos seus versos), muito particularmente na escrita. Relembra ainda que a tradição da retórica na sua ilha está muito enraizada, que a poesia lá nunca é meramente dita, é declamada com todo o fulgor, que a música se funde com a restante cultura – e que dos seus “mestres” ingleses herdaram uma história de sofrimento e marginalidade. Com poucas excepções – a afirmação agora é minha – a história das ilhas sujeitas às chamadas metrópoles pode desviar-se neste ou naquele pormenor, mas converge em muito mais, quando as suas populações a outros obedecem de um modo ou outro, o legado raramente é feliz. Entre a escravatura feudal de Quatrocentos e a racial dos séculos posteriores que venha quem quiser e escolha. Não me foi nem me é difícil, muito pelo contrário, identificar-me de modo intelectual e emotivo com a poesia de Derek Walcott, que, para além do mais, interliga o seu referencial e saberes a toda a grande cultura ocidental, desde os Antigos até aos nossos dias.

“…A presença de onde estás. Isso é uma coisa primordial, e sempre foi assim … Sentia que era sobre isso que queria escrever… Yeats já o tinha dito; Joyce também o disse. É fantástico que Joyce poderia afirmar que pretendia escrever para a sua raça, querendo dizer os irlandeses. Pensar-se-ia que Joyce deveria ter uma mentalidade continental mais abrangente, mas Joyce continuou a insistir no seu provincianismo simultaneamente com uma das mentes mais universais desde Shakespeare. O que poderemos fazer como poetas honestos é simplesmente escrever adentro de um perímetro que na realidade não mede mais de vinte milhas”.

Mencione-se, por agora, alguns volumes pós-Nobel de Derek Walcott, como The Prodigal (2004) e White Egrets (2010). A sua poesia tem sido compilada e recompilada em sucessivos livros, dos quais o mais recente é The Poetry of Derek Walcott 1948-2013. Comece-se por aqui, que se começa muito bem. Uma última curiosidade, especialmente para os eventuais leitores açorianos. Mais do que uma vez nesta entrevista da The Paris Review Walcott refere-se a uma West Indian literature/literatura oeste-caribenha. Sem pedir desculpas a ninguém. Esse rol inclui o antecessor C.R. James, e depois nomes tão conhecidos como V. S. Naipaul, e, de língua francesa, Aimé Césaire e Edouard Glissant.

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Writers At Work: The Paris Review Interviews (Eighth Series, Edited by George Plimpton), New York, NY, Penguin Books, 1988. As traduções aqui são minha responsabilidade.

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