Dos vencidos da Vida

Dos Vencidos da Vida

De modo que a minha vida não é boa nem má: corro para a frente e para trás, ao longo do quintal e a toda a extensão do meu arame.

João de Melo,

As Coisas da Alma e Outras Histórias em Conto

Vamberto Freitas

Não pretendo enumerar aqui a vasta obra de João de Melo, apenas mencionar alguns dos livros que mais me marcaram desde o início da sua carreira: O Meu Mundo Não É Deste Reino, Gente Feliz com Lágrimas, Lugar Caído no Crepúsculo, Os Navios da Noite, Dicionário de Paixões, O Mar de Madrid e Autópsia de Um Mar de Ruínas, este o seu conhecido e notável romance sobre a guerra colonial em Angola. De fora fica vária outra ficção, também marcante, bem como o seu belo livro de viagens Açores, O Segredo das Ilhas, ensaios literários e a poesia de Navegação da Terra. Menciono estes títulos porque corre neles toda uma temática consistente, seja em romances de grande fôlego, seja nestes contos de As Coisas da Alma e Outras Histórias em Conto, cuja 3ª edição acaba de ser publicada. A 1ª edição saiu na Dom Quixote em 2004, e a 2ª no Círculo de Leitores em 2006.

Vem escrito em nota de abertura que o autor retrabalhou a sua linguagem (sem contudo mudar as ficções originais) e que acrescentou ao volume três contos inéditos. Como esta é a minha primeira leitura, fiz questão de ignorar e não distinguir entre a os textos iniciais e os agora incluídos como acrescento à edição. O que pretendo fazer é simplesmente uma leitura sequencial e julgar sobre a coerência e a solidez da obra. Na verdade, trata-se de uma narrativa unificada, como já disse, pela sua temática e pela escrita, ou seja, histórias de vencidos da sociedade em várias geografias e tempos. Aliás, nunca João de Melo deixou de intercalar a vida das suas personagens por uma distribuição entre Lisboa e Açores, África e Europa.

Talvez por um certo complexo de inferioridade, alguns outros escritores açorianos, mesmo residindo no continente português a maior parte das suas vidas, parecem não conseguir dissipar esse facto na sua pulsão criativa. Sendo, porém, a força das raízes irresistível, mesmo esses autores raramente escreveram ou escrevem uma página que não expresse a sua açorianidade literária. Rejeitam as suas origens por acharem que isso os “diminui” perante os seus pares continentais. Nada de mais errado ou mal pensado. Lembremos Vitorino Nemésio, José Martins Garcia e Natália Correia e veja-se neles o contraponto a esta anomalia literária ou teórica.

Não creio ser necessário citar todos os títulos dos contos deste livro. Basta-me exemplificar com “O ouro em pranto”, “Pesa-me de vos ter ofendido” e “O enterro mais triste do mundo”. Todas as suas personagens, masculinas ou femininas, permanecem mal ajustadas ao seu meio social, que lhes inflige todo o tipo de humilhação, a braços com os seus falhanços pessoais, familiares ou amorosos. São vítimas do destino nas mais variadas circunstâncias. Em todas elas o leitor verá a ambiguidade e a ironia da própria vida no que em nós haverá ou não de bondade e maldade, na luta por uma sobrevivência que preserve a dignidade, ou nos permita enfrentar cada dia, dentro e fora de casa. Toda a escrita sai da moda contemporânea quando rejeita as grandes questões coletivas e se centra no interiorismo dos seres reinventados pelo escritor. Não fomos nós, nessa inversão existencialista, que criámos a sociedade. A História guarda-nos um lugar, mas só cabe a cada um lidar com a sua sorte.

“Da janela do quarto – diz o narrador acerca de uma personagem a viver a sua melancolia em Lisboa – e através das cortinas corridas, ela olha a rua sob o declínio da tarde, observa a luz, ama o dia. Segue o movimento da tarde com o olhar cansado e distraído; acompanho-o até onde, lá muito longe, ela se curva caindo sobre as crinas do mar. O poente é uma cauda de pavão: espalha sobre a água um arco-íris de penas sangrentas que ardem em sarça, como o sal no lume. Diz adeus ao dia, recolhe-se para o interior da casa – e põe-se a chorar. Chora num pranto convulso, cheia de paixão. O Outono sempre lhe trouxera sentimentos de mágoa acerca do mundo…”

A definição dos nossos valores, na circunstância existencial, está sempre em causa. Nestas páginas, por vezes sóbrias e pessimistas, ninguém escapa aos seus espelhos, que ora distorcem a imagem, ora a diminuem. Entre nós nos Açores há sempre a tendência, algo despropositada, para comparar Vitorino Nemésio a outros grandes romancistas e contistas. Se Nemésio “retratou” uma pequena e medíocre burguesia em ascensão a meados do século passado aqui nas ilhas, João de Melo, em linguagens cruas e claras, como acontece em quase toda a grande arte literária, recriou a pobreza real e o espírito de uma determinada geografia, tanto na sua ilha natal, São Miguel, como depois em Lisboa e outras paragens retratadas na sua obra. Se toda a ficção parte de territórios íntimos, a verdade é que João de Melo foi, tem ido e continua a ir, ao universalismo da condição humana nas mais variadas nações ou culturas, principalmente desde o Arquipélago ao Canadá, à Europa e à África – destinos principais da salvação histórica ou da nossa tragédia nos tempos em que este país era governado pelo piorio da política, da economia e da finança. Se a obra continua sem data e se mantém intemporal, isso só reconfirma a sua grandeza.

Edmund Wilson, o grande crítico americano do século passado, dizia que o que mais distinguiria a prosa moderna (agora pós-moderna) seria a poetização que até então era esperada no seu género mais próprio. João de Melo foi sempre esse escritor que entende a alma humana na sua condição contraditória. Uma vez mais tal acontece, em estado que nunca deixa de ser ambíguo, pelo menos entre as personagens e protagonistas mais conscientes dos seus dias e do seu ser. Já muito escreveu este autor após a edição inicial destes contos. Nunca, porém, deixou de nos ver a nós de um modo com tanto de trágico como de heroico. A sua obra está marcada por essa temática e pelo estilo das suas linguagens – categorizada como grande literatura. Nessa continuidade há como que uma visão algo obsessiva do que entende ser a nossa vivência solitária, insular, num mundo em caos contínuo e talvez perpétuo.

Resta dizer que muita da obra de João de Melo se encontra traduzida em vários países e línguas: Espanha, França, Itália, Holanda, Roménia, Bulgária, Alemanha, México, Colômbia, Croácia e Estados Unidos. Happy People In Tears (Gente Feliz com Lágrimas), o seu romance mais conhecido (agora a celebrar 30 anos de publicação) foi traduzido na América por Elizabeth Lowe, antiga colega nas aulas de Gregory Rabassa em Nova Iorque da minha mulher Adelaide Freitas (recentemente falecida), que também escreveria uma das primeiras séries de ensaios que depois foram reunidos no livro João de Melo e a Literatura Açoriana, publicado pela Dom Quixote em 1993. São poucos os autores portugueses da nossa modernidade que desfrutaram de tanta atenção em Portugal e no estrangeiro. Isso fala por si, quanto à grandeza da sua escrita e de um percurso literário com tanta consistência e lealdade às suas múltiplas geografias de afinidades eletivas.

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João de Melo, As Coisas da Alma e Outras Histórias em Conto, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2018. Publicado no Açoriano Oriental, 30 de Novembro, 2018.

 

 

De Ângela Almeida e de Natália Correia: uma revisitação

De Ângela Almeida e de Natália Correia: uma revisitação

 

Cruzei o mar em direcções diferentes/Por quantas terras fui, por quantas gentes, nesta longa viagem que não finda.

Natália Correia, “Manhã Cinzenta”

Vamberto Freitas

     Estou em crer que a contínua fúria literária em volta de diários e de fotobiografias anunciadas entre nós, ou então anunciadas na altura em que este texto foi escrito, a cultivação de outro género literário desde sempre fundamental para a literatura no mundo anglo-americano: a biografia (e autobiografia), desenvolvida de escritores e outros literatos. Este á apenas um palpite, mas quer isso venha a acontecer ou não, creio que também já percebemos que quem gosta de livros também gosta de quem os escreve, assim como se percebe cada vez mais que toda a literatura contém uma boa dose de autobiografia, que a experiência vivencial de cada autor, que as suas origens geográficas e sociais são do mesmo modo fundamentais para a sua obra. Factos vividos, memórias da terra, famílias e toda a gente em redor, os que criaram e despertaram em cada autor um imaginário do mundo, um imaginário do passado, e particularmente os sonhos do futuro ou as utopias interiorizadas em cada um deles ou delas são as chaves, por assim dizer, indispensáveis à desconstrução e apreensão de signos e significações nas mais diversas e consequentes obras suas. Retrato de Natália, escrito e organizado pela poeta e escritora Ângela Almeida (que um pouco mais tarde viria a fazer a sua tese de doutoramento sobre a sua autora de preferência, entre outros e outras), que foi sua amiga e leitora atenta, vem uma vez mais comprovar que a introdução a uma obra literária como a de Natália Correia (poesia, em primeiro lugar, mas também teatro, ficção e poesia) poderá começar por aqui, num livro que tanto aproxima o leitor aos mundos diversos da autora como oferece um fio unificador que antes poderiam ter parecido livros desconexos, ideias avulsas ou, particularmente no caso de Natália, caprichos literários fugazes. Cada autor, pois, merece um biógrafo, e Natália encontrou em Ângela Almeida a sua cúmplice ideal.

Neste Retrato sobressaem, para além do que Ângela Almeida chama “O triângulo afectivo” da autora, constituído pela mãe, por uma irmã e por ela própria (muita da poesia de Natália é simultaneamente a exaltação do amor que daí nasceu e depois o registo comovido de sucessivas e inevitáveis perdas pelos vários caminhos cruzados e pelo afastamento do tempo), dois impulsos temáticos e metafóricos: ora o dialogismo e a dialéctica entre Poesia e o Poder e o insistente regresso à Ilha ou uma ilha de utopias interiores, uma tentativa de rebater a dessacralização do Homem, de recuperar o amor e o humanismo que ela começou a perder logo no início da sua carreira literária e a observar também a partir dessa etapa com a Segunda Guerra Mundial até aos dias da sua morte a 16 de Março de 1993. Se em Portugal uma obra literária se confunde quase por completo com a biografia do seu autor (não necessariamente nos factos mas sim quanto a atitudes), a de Natália Correia será uma das mais paradigmáticas. Lágrimas e irreverências, disciplina à mesa de escrever e puro prazer na companhia dos outros, melancolia e (creio no caso de Natália, a palavra correcta), algazarra, abraços ao Poder seguindo demolidores murros, o universalismo vivido e pensado, o apego sem apologias às suas ilhas açorianas, eis aqui o retrato de uma escritora e de uma mulher portuguesa em “tempos sombrios”, como diria Hannah Arendt num livro com o mesmo título acerca de outros grandes escritores europeus desta da mesma época. Natália Correia foi a nossa mulher de letras por excelência, atenta e envolvida no mundo da política conjugando sempre a intervenção e a reflexão, vendo o mundo como o seu palco de acção e, apesar das aparentes agressões verbais de quando em quando, a poeta e a escritora que escrevia para todos sem se preocupar com as modas académicas destas décadas mais recentes ou com uma crítica toda ela virada para as universidades e para um pretensiosismo formalista que imita, só isso, sem nunca recriar o que no estrangeiro foi acontecendo. Toda a sua força provavelmente vinha dessa posição fleumática ante uma cultura literária supostamente, e por vezes ridiculamente, elitista quanto a um outro mundo das ideias e da própria literatura, da sua postura cívica e do comportamento pessoal de cada cidadão consciente do seu lugar na sociedade.

“Só no fim – escreve Manuel Alegre num depoimento em Retrato de Natália Correia, essa magnífica fotobiografia de Ângela Almeida –, com Sonetos Românticos, conseguiu ganhar um prémio. E foi preciso ter escrito um livro que ficará como um dos grandes filmes da nossa poesia. Contra ela conspiravam os que pretendem fazer da poesia uma charada para especialistas e aqueles de quem nenhum verso e nenhuma frase serão sabidos de cor. Natália já está no nosso ouvido. Os catorze degraus de cada um dos seus sonetos forma também catorze degraus de uma ascese e de uma despedida. Ela sabia que estava a dizer adeus”.

Uma fotobiografia é feita de duas narrativas complementares: texto e fotos. Enquanto entramos na história visual da autora – nas suas andanças, nas suas companhias sociais e literárias, e nos seus templos íntimos de vivências quotidianas –, Ângela Almeida transporta-nos pelos cruzamentos mais significativos de Natália e da sua obra. Consegue assim, neste Retrato de Natália Correia, impôr uma ordem e uma visão a todo um corpo literário que começa a ser publicado na década atribulada do 40 e só termina nos últimos dias da autora. Os nomes invocados aqui são uma lista vital da literatura da nossa modernidade e pós-modernidade. Para mim, uma das componentes mais arrojadas desta narrativa de Ângela Almeida que se mantém equilibrada entre a linguagem do afecto e a historiadora de ideias e literatura foi o começo da recuperação de Natália Correia, de certo modo, para além da sua indiscutível açorianidade. Apesar do que acabo de afirmar, faço uma leitura metafórica de duas fotos na página 64: Natália a dançar com Sá Carneiro, numa postura respeitosa e distante, e outra com Vitorino Nemésio, a poeta a desfazer-se em carinhos, alegria e aproximações sem tréguas. Foram dois poetas portugueses idos e vindos das ilhas. Se a Pátria ou Mátria foi-nos sempre esta dispersão singular na Europa e no mundo, a força das raízes é-nos inegável, a sua lava tantas vezes escrita e descrita na obra de ambos, o nosso solo comum e memória indelével. Ângela Almeida, repetidamente, faz-nos lembrar que para a autora de A Pomba, O Dilúvio, Madona, Não Percas a Rosa e os já mencionados Poemas Românticos, assim como outras obras como Descobri Que Era Europeia (sobre a sua primeira viagem aos Estados Unidos), o regresso às origens e a tudo quanto esse gesto simbolizava foi uma constante, tal como todo um referencial humano e psico-histórico (a ficção de A Madona, por exemplo) na sua palavra escrita.

A Revolução de Abril, nos seus momentâneos delírios e loucura colocou-a abertamente ao lado de Nemésio nas movimentações políticas e emotivas quando certos quadrantes das forças vivas do arquipélago foram levados a repensar o futuro relacionamento dos Açores com o resto do país. Foi a autora do Hino dos Açores e, tal como está retratado e referido nesta obra de Ângela Almeida, nunca se retraiu publicamente em encontros com esses sectores açorianos, ou até como intermediária entre eles e altas figuras institucionais, como foi o caso de Ramalho Eanes e a sua tentativa de conhecer a fundo o que se passava a meio Atlântico. Uma vez mais, a artista e a cidadã, a Poesia e o Poder ora se aproximavam, ora poderiam a qualquer momento entrar em conflicto aberto. Não será de estranhar, pois, que Dórdio Guimarães, seu companheiro de longa data e seu marido dos seus últimos anos, tenha privilegiado desde logo o seu lugar de nascimento, a Fajã de Baixo em São Miguel, como ponto referencial a toda a vida da autora, e com a promessa de um dia trazer para cá o seu espólio. Portugal tem uma memória colectiva dispersa naturalmente por todos os seus recantos, e futuras investigações literárias, como levou a cabo durante anos a própria Ângela Almeida, só poderão tornar-se mais ricas e mais significativas quando estas e outras verdades forem inteiramente reconhecidas e respeitadas.

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Ângela Almeida, Retrato de Natália Correia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994. Parte deste trabalho foi retirado, com ligeiras modificações, de um outro ensaio meu publicado em 1994. Publicado no meu “BoderCrosings” no Açoriano Oriental, 23 de Novembro, 2018.

Do Holocausto e da nossa herança judaica

O pai desenvolvera uma teoria segundo a qual tudo o que acontece está interligado por finos filamentos de causa e efeito, que normalmente não conseguimos ver. Chamava-lhes os fios incandescentes, porque dizia que emitiam uma luz quente, pelo menos para os com visão mística suficiente para os verem.

Richard Zimler, Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco

Vamberto Freitas

     O novo romance de Richard Zimler, Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco, o quinto livro do seu chamado ciclo Sefardita, aborda a (pouca) sorte dos judeus na Europa desde Lisboa no século XV à Polónia do século passado, e noutras imensas geografias até aos nossos dias em Nova Iorque. É uma obra prima, nada menos. A tradução de Daniela Carvalhal Garcia é tão competente que depressa esquecemos que foi originalmente escrito noutra língua. Raramente se vê esta capacidade literária entre nós, cada personagem uma descoberta do outro lado da nossa própria humanidade e desumanidade, a ironia, e mesmo o humor, dominam a narrativa. Por certo que o Holocausto judeu já mereceu centenas, ou milhares, de livros de todo o género, mas creio que ninguém como Richard Zimler ficcionou esta História tão sistematicamente, nem sequer os outros judeus americanos nos Estados Unidos, que a partir dos anos 30 praticamente revolucionaram toda a literatura do seu país, particularmente na forma de ensaio e ficção. Zimler tem outra distinção: detém a cidadania dupla americana e portuguesa, e foi a história e mítica judaica lusa que o apaixonou desde sempre a partir da publicação de O Último Cabalista de Lisboa. Tem ainda outra singularidade na publicação da sua escrita. Por vezes é a tradução portuguesa que é publicada primeiro, e só depois em inglês, recebendo de imediato recensões críticas em muitos dos melhores jornais do mundo, inclusive no seu país de nascença e adopção, na Grã-Bretanha e em todo o mundo de língua oficial inglesa, assim como no próprio Jerusalem Post. No centro de toda esta obra sefardita (Zimler tem outros romances com as mais variadas temáticas identitárias, por assim dizer) estão os descendentes da família Zarco, literalmente queimada na praça pública em Lisboa ou então exilada para os mais distantes países na Europa e nas Américas. Já li outros romances do autor, e sobre os quais escrevi, mas quanto aos quatro livros deste ciclo, este é o primeiro que leio. Não perdemos nada do fio à meada sem termos lido os primeiros volumes. Aliás, a encerrar Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco. o narrador inclui um documento fundador de todas estas histórias escritas pelo cabalista-mor lisboeta do século XV, de nome Berequias Zarco, referido de quando em quando nesta longa narrativa quando os personagens tentam entender a sua má sorte, particularmente durante a II Guerra Mundial e o poder nazi na sua tentativa de exterminação total de todo um povo, assim como de outras minorias dentro e fora da Alemanha.

Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco abre no ano de 2007, e vai oscilando no tempo até aos nossos dias, estando no centro a Polónia e o levantamento judeu no gueto de Varsóvia em 1944, que provocaria o resto da catástrofe total até ao fim da guerra a meados do ano seguinte. Cada capítulo é narrado pelos descendentes dos sobreviventes, que vivem assombrados por esse passado quase indizível em palavras. Ethan, nascido em Nova Iorque e agora professor e artista plástico em Boston, conta a história de Benni, seu pai já nos últimos anos da sua vida, recria ainda um dos mais fascinantes personagens da literatura contemporânea, de nome Shelly, primo do seu pai, bissexual mas vivendo a felicidade de um longo casamento com uma canadiana não-judia, depois de ter viajado e amado homens e mulheres desde os seus anos de refúgio em Argel, e o narrador reinventa, ostensivamente, dois cristãos polacos, um homem de nome Piotr que havia escondido o seu pai ainda menino, levando-o com pressa para casa de uma antiga professora sua de música, Ewa, cristã, que faz tudo para que os nazis ou os seus simpatizantes polacos nunca o levassem para um dos “campos da morte”. Eventualmente Benni e George, antigo amante de Shelly, vão à sua procura depois da guerra para levá-la para a América, já idosa, onde faleceu alguns anos depois. Que nenhum leitor se intimide com um grupo de protagonistas todos inter-relacionados, pois a prosa de Zimler é de uma clareza luzidia, levando-nos a virar página após página, cada uma com as maiores surpresas ou viragens na narrativa, como diriam os new critics (hoje fora de moda no mundo universitário) americanos acerca de qualquer grande romance. O título na versão original dá-nos precisamente essa ideia de linearidade: The Incandescent Threads, ou seja, os “os fios incandescentes” que iluminam estes mundos de vida, amor e morte. Zimler é formado em Religião Comparada pela Duke University, fez um mestrado em Jornalismo na Stanford University, e vive no Porto desde 1990, onde também deu aulas até se dedicar totalmente à escrita e ao diálogo imparável nas escolas e noutras instituições culturais. Creio que tudo isto faz dele o grande escritor que é. Nada ofusca, os seus passos metafóricos e simbolistas nunca nos deixam na dúvida, muito pelo contrário. Em passo após passo, o leitor quer ir lendo devagar para digerir toda esta riqueza de linguagens e imagens. Não se trata de um romance acusatório perante seja quem for. É a noção do amor e da redenção (aliás como se afirma na contracapa) dos seus seres inventados e de nós próprios que dominam toda a narrativa. Se a arte retrata frequentemente o pior de nós, também faz o contrário: reafirma o valor da vida e da luta. Algumas das cenas dos anos 60 neste livro envolve protestos activos desses sobreviventes contra a guerra no Vietname. Como que a dizer: nenhum povo merece a morte em nome seja do que for.

“Provavelmente para compensar o vazio – escreve Ethan, filho de Benni – dentro de mim – e que tinha a forma e o tamanho exato do meu pai –, em breve o meu trabalho começou a ficar mais habitado. Tudo o que sabia sobre ele e o seu passado entrou nos quadros e desenhos mitológicos – Glukl, a papagaia cor de esmeralda, a camisola de lã azul que Ewa tricotara para ele, os cigarros e o isqueiro, o Centro de Recrutamento Militar em Nova Iorque, as exigentes ereções de Shelly e as gravatas indianas de George, a fotografia de Louis Armstrong que era do avô Morrie, as tulipas que o pai e Shelly haviam plantado, as mantas de retalhos que a minha mãe recebera de presente de Belle, a sua fita métrica e a máquina de costura preferida, o tapete que Piotr o enrolara quando fugiram de Varsóvia… E os olhos dele – as noites sem luar em que eu iria viajar para sempre”.

Isto não é só prosa brilhante sobre a memória, a dor e a saudade. É sobretudo o relembrar de tragédia sem igual na modernidade, o relembrar dos que a sofreram em directo e na carne um dos maiores assassínios de toda a História, e depois a dor de filhos e de todos os que tiveram de reviver e reimaginar esses anos ainda bem recentes dos que passaram a uma realidade que nunca se tornou na normalidade após testemunhar a barbárie absoluta. Richard Zimler devolve-nos, uma vez mais, a redenção de um Portugal que tem nas suas páginas um passado bem cruel e desumano para com os seus filhos judeus. Mais do que uma vez neste romance, as vítimas dos nazis falam em procurar as suas famílias ancestrais no nosso país. Nos tempos de uma Europa nazi, e agora de novo em instantes de intolerância em vários outros Estados da suposta “União Europeia”, a temática do medo generalizado está de regresso. Assim mesmo, é de uma ternura sem igual na literatura perante tudo o que aqui é reinventado ou relatado. Este “ciclo sefardita” em quatro grandes romances merece mais do que críticas simpáticas ou acolhedoras, merece um outro tipo de reconhecimento que lhe é devido por este que é o país por ele livre e conscientemente adoptado.

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Richard Zimler, Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco (tradução de Daniela Carvalhal Garcia), Lisboa, Porto Editora, 2018. Publicado no “Açoriano Oriental” de 2 de Novembro, 2018.