A Comédia Humana Numa Versão Judia-Americana

SS

Só conheci o eminente crítico literário americano Harold Bloom perto do fim da sua vida e adquiri o hábito de o visitar com alguma regularidade na sua casa de New Haven, Connecticut… eu era uma espécie de anomalia entre os seus muitos admiradores.

Joshua Cohen, A Família Netanyahu

Vamberto Freitas

As palavras aqui citadas são tiradas do ante-penúltimo texto do romance A família Netanyahu, de Joshua Cohen, o escritor judeu-americano que conquistou o ano passado um lugar cimeiro na literatura do seu país, assim como por muita outra parte no mundo, tendo vencido o cobiçado Prémio Pulitzer e o Prémio Nacional do Livro Judaico (Jerusalém). A imprensa internacional também não se conteve nos elogios ao autor e à sua obra, declarando-o “o livro do ano” (2021), todos afirmando que Choen é um dos grande escritores norte-americanos da atualidade. Por certo que nenhum leitor poderá ler um único passo ou diálogo deste romance sem rir em voz alta, tremer de satisfação artística a sós ou na companhia de outros. O romance cómico, dirigido a um recetor fechado em qualquer parte, será talvez um dos géneros mais difíceis de conseguir. Quando o narrador se confunde abertamente com o autor, a narrativa na primeira pessoa torna-se como que uma hilariante conversa entre o leitor e o escritor. A ficção destas páginas nasceu de sucessivas e prolongadas visitas a um dos mais distintos críticos do nosso tempo, Harold Bloom. Nesse mesmo texto intitulado “Créditos, Incluindo Um Especial” nomeia, pela voz do visitante e do seu famoso e controverso anfitrião, praticamente todos os nomes significantes da ficção contemporânea e da sua teorização na nossa época.

A Família Netanyahu encerra com uma carta verdadeira enviada ao autor por uma amiga também judia-americana, lésbica assumida, que o manda para outro lado, assim como a tradição milenária que ela acusa de mais não ser do que reino patriarcal. “Querido Josua Choen, acabei de ler o teu ‘livro’ e vou dizer de uma vez por todas e não se fala mais no assunto: Judaísmo é apenas outro nome para O PATRIARCADO (e para a HEGEMONIA PATRIARCAL). Somos todos um povo só, o Povo Humano, sem nenhuma diferença entre nós. O planeta está destruído, as máquinas estão a tomar o poder, e estas tretas todas dos judeus já não interessam nada…”. Pura ironia, entenda-se. O resto da carta não deve ser citado num periódico dito de família, mas quase nos faz cair da cadeira a rir. Fica o aviso: quem mais se inquietar com o revisionismo da História e da Identidade seja de quem for, não abra este livro. Não é anti-ninguém, só anti-estupidez quando se confunde ou se conhece mal ou se contorce o passado incerto interligando-o com qualquer teologia ou crenças fantasiosas. Pelo meio de toda esta prosa está um Professor Doutor de História, judeu-americano, já se sabe, numa pequena e provinciana universidade algures em Nova Iorque longe de Manhattan, o fictício Corbin College. Os seguidores de David Lodge não ficarão desapontados com este romance, pelo contrário, é um regresso maior do riso que menoriza sem magoar o mundo académico e os seus supostos especialistas, os corredores onde trincam todas as invejas e se procura o prestígio intelectual e “científico” à custa de infindáveis citações em monografias ilegíveis. Derridas & Co são lenmbrados em casa de Bloom, sem juízos de valor, mas mas com efeito calculado.

Netanyahu, isto mesmo, a família do – outra vez – Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu (Bibi, no gozo de muitos) ainda a braços com a Justiça do seu país acusado de corrupção em diversas áreas da vida pública. O romance é uma tirada cómica de uma viagem aos Estados Unidos pelo seu pai e mãe, e mais dois irmãos de Benjamin na sua infância e juventude, o meio professor meio impostor Benzion Netanyahu, que havia saído de Jerusalém em busca de um lugar na academia norte-americana levando consigo “conhecimentos” históricos sobre o destino dos judeus na Península Ibérica durante o século XV – e a Inquisição, acompanhada de uma teoria disparatada que explica a sua aparição para perseguir e queimar os descendentes de Sião em Espanha e Portugal. Um povo que permite que os seus artistas riam de si mesmos tem de ser um povo que já passou pelo pior e desumano. Por entre toda a sua verdade profana e crenças religiosas, intrigas e rivalidades de toda a natureza política e ideológica casa adentro muito antes e depois da refundação do mítico Sião, a tragédia dá lugar à comédia universal, para além de tudo o resto que nos separa. Ninguém foge “ao humano”, de que falou de Harold Bloom sobre Shakespeare quando este o inventou nos seus dramas e demais escrita. O narrador e protagonista desta narrativa chama-se Ruben Blum. Pois. Sabemos a quem se refere, ou em quem se fundamenta toda a sabedoria literária e filosófica que aqui se esconde num outro professor dessa já mencionada universidade perdida entre neve e florestas, com todos os sintomas de vangloriação da sua faculdade numa vivência quase inconsequente entre copos e livros, e ainda a pretensa lecionação de matérias que raramente são dominadas por quem se formou noutros campos de estudo. Está de volta a gargalhada e ironia dos melhores escritores judeu-americanos, aliás mencionados pelo autor sem apologia na própria narrativa: Saul Bellow, Bernard Malamud, Woody Allen e Philip Roth, o inimitável autor de Sabbath’s Theatre/Teatro de Sabbath, que Joshua Choen afirma ser, e acreditamos, um dos seus mestres. Sim, a rara insinuação de sexo está aqui presente, e uma cena em casa de Blum com a filha a caminho de uma faculdade e um dos filhos de Netanyahu que fica em casa do narrador durante um dia e uma noite antes de Ben-Zion (também assim escrito pelo narrador na sua genial ironia) ser entrevistado por um comité que vai decidir a sua candidatura à pequena universidade, e a uma conferência sua, que ninguém entende, os colegas esperam pela hora social alegre, e o restante público queda-se calado e provavelmente a tentar não adormecer. São os fretes académicos e literários do costume.

“As recordações mais vivas que guardo – diz Ruben Blum resumindo horas de vergonha e convidados em casa a estragar-lhe a sua paz sempre condicionada – daquele dia com Netanyahu são do tempo passado ao sabor da intempérie, cuja violência desencadeou uma grande angústia dentro de mim – atravessando o campus em passo acelerado entre edifícios de cuja localização não estava muito seguro, edifícios que conhecia de nome mas não de vista ou de vista mas não de nome, angustiado por poder chegar tarde, angustiado por poder dar um trambolhão no gelo, e acima de tudo – depois da entrevista – angustiado com a possibilidade de não conseguir manter a compostura e perder completamente a paciência.

Quando saímos do campus e atravessámos a cidade à luz do crepúsculo, Netanyahu ficou para trás e começou a lamentar-se na língua do vento, o hebraico. Eu percebi o essencial: sentia-se subestimado, tratado com condescendência, rebaixado. Sentia-se insultado, ele que tinha feito os insultos e vindo em busca de favores.”

Não há como não sair da narrativa aqui. Imaginemos Harold Bloom a contar algo assim nos seus últimos dias de vida, encadeirado e à mesa da sua sala, com a sua real sapiência literária que caracteriza toda a sua obra polémica, o humor corrosivo, desconfiado perante tudo que era a instituição universitária quanto a estudos literários, e a ironia que marca o riso imparável na leitura deste romance, um exercício artístico a um tempo de absoluta originalidade, e descaradamente continuador de outras obras e autores mencionados anteriormente. Por fim, não nos é possível desligar este romance de uma resposta encoberta à arrogância de uma família que sempre influenciou o rumo de Israel, e com a qual o autor não pede licença para discordar, como qualquer escritor que rejeita as amarras do discurso acerca de uma cultura e de um povo heroicamente sobrevivente das maiores atrocidades na Europa. A América foi desde o início do século passado um porto seguro da sua Diáspora – a inevitável e dúbia americanização, aqui representada na mais estridente gargalhada literária. A partir dos anos 30, os filhos e as filhas dos imigrantes judeus começaram a dar conta da experiência radical que tudo isso os envolveu, o imperativo de colocar lado a lado ao sofrimento dos antepassados um presente que eles queriam normalizado, a afirmação da vida sem negar a História vivida, o “teatro” de Roth, entre tantos outros, esse espelho de toda a nossa humanidade contraditória, a convivência possível em terras que já não deveriam ser “estranhas” nem de “estranhos”. Trata-se de uma brilhante literatura pós-moderna, pertencente a uma muito antiga tradição, sempre debaixo da exegética, ora conflituosa, ora amenizadora entre povos e culturas.

A Família Netanyahu tem como uma espécie de sub-título Relato De Um Episódio Menor E No Fundo Até Insignificante Da História De Uma Família Muito Famosa. O começo do riso, pois. A presente obra vem na sequência de outros romances, coletâneas de contos, e ensaios vários. Nascido em Atlantic City em 1980, reside agora em Nova Iorque. Trata-se de outra antiga tradição de escritores americanos mais conhecidos a partir dos anos 20. Longe da grande máquina editorial e dos meios publicitários, nada feito, se bem que a maioria dos modernistas americanos de lá se safava logo que possível, logo que de nome feito num ou noutro livro.

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Joshua Cohen, A Família Netanyahu (Tradução de Francisco Agarez), Lisboa, D. Quixote, LeYa, 2022. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 2 de Dezembro, 2022.

De Pedro Arruda E Dos Nossos Silêncios

A enxurrada de casos jurídicos transformados em notícias de última hora é ofegante e embriaga.

Pedro Arruda, Café Royal

Vamberto Freitas

As palavras que vão aqui em epígrafe tanto se aplicam a hoje, como a ontem, a anteontem, a este ano, como ao ano passado, como talvez à nossa vida pública que ainda cabe na memória de muitos outros cidadãos. Na verdade, a surpresa é outra, e não está escrita: os poucos intelectuais públicos açorianos que em quase todas ilhas se manifestam perante toda e qualquer medida tomada pelos poderes públicos em nome de todos nós. Não sejamos maniqueístas, não sejamos injustos: uma democracia necessita de forças livres e mesmo organizadas para decidirem qualquer medida que, supomos, tem sempre o bem comum nas suas intenções, com todos os erros que poderão vir desse processo. Poderemos ter de encarar incompetência, ou pior ainda, a corrupção, que quase parece inerente ao sistema no seu todo, o favoritismo partidário no Poder, o nepotismo do costume, a inverdade muitas vezes justificativas quando tudo corre mal. Nada disto cancela o valor de uma sociedade livre, aberta – muito pelo contrário. O que frequentemente nos falta são as vozes dissidentes dentro e fora do que se convencionou chamar o arco, bom, a porta giratória entre política e todas as outras instituições públicas e privadas nos Açores, à semelhança do que acontece em todas as outras boas paragens, noutras latitudes. Seja como for, faço das minhas palavras neste instante a introdução a um livro que quebra com as habituais regras que parecem vigorar na sociedade. Não fora essa a minha interpretação e não me daria ao trabalho de estar aqui a refletir fora da minha zona de conforto – e desconforto, com a mesma intensidade – que é a literatura feita de outras formas, mas não necessariamente de conteúdos. Entre a ficção e a realidade há essa zona cinzenta que cada um pensa e reage à sua maneira. Sim, estou incluído nesse grupo do silêncio, pelo menos aparente. Tenho por método, desde há muito, elevar a obra de arte enquanto nas entrelinhas, por vezes em direto, castigo a sociedade de onde sai essa prosa, tantas vezes corrosiva, raramente não constituindo a denúncia artística da História contada pelos vencedores em tudo.

Com efeito, Café Royal: Crónicas à quinta-feira para a última página do Açoriano Oriental, o segundo livro deste género de Pedro Arruda, vem demonstrar a quem o quiser ler que o breve comentário social, político e, sim, literário é uma arte que entre nós sempre foi praticada e tornada num género de escrita igualmente aliciante, como na melhor arte linguística. Para além deste facto, que só por si já é algo pouco comum em qualquer parte ou língua, é a coragem do seu autor – nunca nega as suas raízes e posicionamentos ideológicas, mas também nunca deixa de colocar contra a parede os que atualmente e em sua frente a representam, ou fazem que representam, dirigindo-se simultaneamente em cada um dos seus escritos a outros que contestam as suas opções como cidadão, como autor que pensa e sabe que a sua vida está obrigatoriamente ligada a todos os outros que consigo partilham a sorte de ter nascido e viver na terra que é a sua e nossa.

Café Royal inclui as crónicas publicadas entre Janeiro de 2017-Abril de 2021, numa continuidade que vem do seu antecessor, Tudo O Que Não Se Pode Dizer: Apontamentos insulares sobre pandemias e eleições (2021), com um título auto-explicativo dos temas aí abordados, com a mesma técnica e recursos políticos, e sobretudo literários. O cronista regressa aqui de quando em quando a esse estafado tema – tinha de regressar dada a continuada confusão científica, médica e pública ainda vivida no mundo inteiro sobre o valente e mutante bicho, agora num faz de conta ainda mais trágico para quem muito sofreu, cómico pelas “certezas” que são emitidas literalmente hora a hora. De resto, o autor faz das suas páginas um fino meio de comunicação e prazer puro para os seus leitores quando aborda as mais diversas questões e figuras regionais, nacionais e de terras muito longes na geografia mas cá chegadas pelos meios de conhecimento instantâneo – instantâneo só nos acontecimentos, nunca na sua escrita límpida, a estética da palavra vinda de uma prolongada reflexão sem quaisquer amarras, da sua honestidade intelectual e sinais de vasta leitura de outros pensadores e escritores que fazem parte da tradição Ocidental, e por vezes não só. Deixa cair uma citação ou paráfrase no texto de autores de renome internacional, aludindo indiretamente a teóricos como poucos são capazes de fazer sem parecerem pedantes. Café Royal tem mais em comum com um semelhante tomo do brasileiro Nelson Rodrigues, ideologicamente num outro espetro político, do que com a maioria dos que em Portugal se dedicam ao discurso público e publicado. Poderá nesta inusitada prosa haver recados com endereço marcado, particularmente os mais próximos de si e de nós. Para mim, trata-se apenas da partilha literária, com outras pertinentes insinuações subjacentes, de um raro cronista cuja formação académica e intelectual superior resulta nessa prosa mais difícil – dizer muito e claramente em poucas linhas, fazer o leitor não querer deixar de chegar à próxima coluna. Li-o em sequência, como uma narrativa cronológica que de texto em texto se encaixa perfeitamente numa visão do mundo que celebra a sua diversidade e rejeita qualquer conclusão fechada, o totalitarismo de pensamento que envenena a maior parte das vozes que nos chegam com regularidade e com tal estrondo que temos de ouvir ou ler, nem que seja num olhar involuntária numa parangona suja e abandonada numa mesa de Café.

“Atravessando – escreve na crónica ‘Mar’ – a janela, indo para lá das recortadas folhas da árvore da borracha, os olhos mergulham na visão do mar. E o mar, pleno e omnipresente, como que entra pela casa, inundando os espaços com os seus sons sincopados e os vários cheiros da maresia. A própria casa, espécie de barco ancorado nas rochas, salpicada constantemente pela espuma das ondas, é uma extensão do oceano, num eterno e imperturbável enlace, uma jura de amor, um casamento para a vida. Por vezes, questiono-me se foi a casa que nos acolheu a nós. Se, ao contrário de Ulisses, sucumbimos ao seu cântico e naufragamos aqui, nestes muros, nestas paredes, janelas e varandas debruçadas sobre o imenso azul do oceano. Ou, pelo contrário, se fomos nós que aqui decidimos aportar, caminhando para o mar pelo verão, como no verso de Ruy Belo. Para sermos, tal como a casa, parte permanente do mar…”

Citei este breve passo porque são nestes momentos que contextualizamos o outro cronista que é Pedro Arruda: o escritor atento aos que tornariam e tornam o nosso mundo num inferno, intercalado com muitas das suas abordagens nesta linguagem serena e, uma vez mais, segura. Lembram-nos que o quotidiano, aqui ou em qualquer parte, é sempre uma negociação entre o que é a vida no seu melhor e o que alguns tentam subverter a seu favor, nunca olhando o pântano da sua vivência e ambição, o calculismo que se alimenta da ignorância ou simples fraqueza da maioria inconsciente do seu poder de travar ou fazer avançar a comunidade. Toda a escrita, em qualquer dos seus muitos géneros, é uma partilha de humanidade, ou então uma série de palavras que visam divulgar a mentira, alastrar o obscurantismo.

Aí está um bocado de prosa que tanto define a ilha – a nossa entranhada condição de açorianos ainda e sempre perplexos quanto à nossa sorte – como se estende à visão da beleza e da imaginada ameaça perante o mistério de qualquer ser à beira de tudo que é vida, à beira de tudo que condiciona o existencialismo em que vivemos, se temos os sentidos e a sensibilidade de reconhecermos a precária segurança da terra e do mar, o espelho azulado ou de chumbo de cada dia. Faz-me lembrar, agora que volto às suas páginas, um passo do romance João Pinto Coelho, Mãe, Doce Mar, em que inclui alguns passos no seu fecho que muito “dialogam”, por assim dizer, com este livro de Pedro Arruda, publicado muito antes. “Quando isso acontecia – diz o narrador do referido romance, a tentar perceber os sinais simbólicos da sua própria existência – eu saía do alpendre e enfiava-me em casa. O cheiro da maresia notava-se mais lá dentro, entranhado como estava no tecido do sofá ou nas fendas de madeira, e eu preferia distrair-me com tudo que via à volta…”. Não pretendo aqui comparar dois livros no seu todo, não se encontram necessariamente um no outro, a não ser através da minha leitura mais recente, da essencial interpretação de como o olhar de dois escritores se assemelha ante uma Natureza que não tem nacionalidade nem língua. A chamada universalidade humana só existe conforme a perceção e inteligência emotiva de qualquer pessoa minimamente consciente de tudo que a rodeia e determina a sua caminhada rumo ao desconhecido.

Café Royal é esse conjunto de crónicas que fazem do seu curto espaço em cada folha um dos melhores livros publicados entre nós nos últimos tempos. Pedro Arruda deixou há tempos de escrever no Açoriano Oriental, e quem perde são os leitores que, estou em crer, começavam por ir diretos à sua esguia e rica coluna, agora uma narrativa coesa em forma de livro, o prazer do texto em prolongamento.

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Café Royal, Crónicas à quinta-feira para a última página do Açoriano Oriental, Ponta Delgada, Edição de Autor, 2022. O meu “BorderCrossings” publicado no Açoriano Oriental, 25 de Novembro, 2022.

De João Pinto Coelho E Do Seu Novo Romance Americano

No dia em que a conheci, passei a sentir falta dela. É um paradoxo cruel, próprio dos filhos tardios, sempre que trocam a perda pelo medo de perder.

João Pinto Coelho, Mãe, Doce Mar

Vamberto Freitas

Mãe, Doce Mar, o novo romance de João Pinto Coelho, publicado há dias, regressa, talvez sub-conscientemente, a alguns dos temas que enformam a sua obra prévia, essa que o colocou num outro espaço literário português e internacional, como raramente acontece entre nós. Se o considero aqui um romance “americano” é porque é isso que dele retenho: a linguagem viva, ora enigmática, ora de significação direta, ora ambígua, assim como a sua invenção de personagens na sua vida exterior, mas muito particularmente na narrativa que nos leva aos seus mais íntimos sentimentos, alegrias e dores, neste caso, de uma família “reencontrada” doze anos depois da vida do protagonista silenciada num dos estados sulistas norte-americanos. Longe dos poucos que lhe restam, essa personagem de nome de Noah vai descobrindo o mais improvável do seu passado, mãe e pai agora por perto, nunca lhe dizendo que o eram ou de como ele veio ao mundo, mantendo no escuro a solitária sorte da sua infância. Um pouco mais adiante vou colocar o livro no seu contexto, mas por agora foquemos a atenção no que nos vai surpreendendo ao longo destas páginas – a redescoberta de toda uma identidade pessoal, o contexto transgressivo da sua nascença. O título contém a palavra “mar” – a génese da vida, a ameaça da morte, a presença avassaladora para os que nele mergulham com prazer, para os nele percebem a limpa solução de tudo. Pelo meio, está a religiosidade católica e as contradições de muitos dos seus interpretes ou representantes, a velha canonicidade dos seus mandamentos quase sempre em choque com a humanidade dos muitos que a aceitaram, dos muitos que seguiram as suas vontades próprias na clandestinidade social possível.

O que nos sobressai desta prosa de João Pinto Coelho é a capacidade de dar forma aos mistérios ou segredos dos seus seres inventados, a representação das vidas desvendadas de um passado que, mais do que memória, é uma construção conforme os medos de cada um, a perda irrecuperável, o medo da reencenação de verdades sempre encobertas. No processo formal e no andamento do tempo no romance, o seu autor constrói ou que habitualmente prende o leitor – as perguntas com respostas adiadas, o quotidiano passo a passo revelado nos relacionamentos entre todos, a realidade escondida por entre a bruma dos segredos que envolvem as principais personagens. Neste caso, uma vida resgatada de um orfanato em Luisiana, Noah aos doze anos de idade, por uma mulher de nome Patience que ele nunca suspeita ser a sua mãe arrependida e a caminho de um fim, por ela destinado, supõe-se, como que num outro ato de redenção final do que se tem ainda por desvios fortemente castigados pelas nossas nossas sociedades, e particularmente pela consciência magoada. Esta é uma América desconhecida pela maioria de nós, mas que a própria biografia do autor nos permite aceitar com toda a segurança todas as realidades por ele reinventadas – desde o mundo do teatro em Nova Iorque ao esconderijo que são as instituições mais ou menos incontestáveis, quase sempre na representação de colégios privados, ou na religiosidade de cada comunidade.

João Pinto Coelho é o autor de uma original trilogia da literatura portuguesa contemporânea: Perguntem a Sarah Gross, finalista do Prémio Leya em 2015, Os Loucos Da Rua Mazur, Prémio LeYa em 2017, e Um Tempo A Fingir, de2020. Trata-se de uma sustentada representação ficcional que vai desde os Estados Unidos e Alemanha ao campo de concentração de Auschwitz, respetivamente à Polónia e Itália, a História revista num tempo posterior, as vozes esquecidas das vítimas, ou nunca ouvidas. Três narrativas de fôlego sobre a sorte dos judeus às mãos dos alemães, polacos e italianos durante a Segunda Grande Guerra. No caso de Os Loucos da Rua Mazur o autor provocou acesa discussão em certos círculos na Polónia, que não gostaram da sua audácia em juntar algumas comunidades católicas à perseguição, tortura e assassínio dos que durante séculos haviam sidos os vizinhos de todos que os rodeavam em cidades ou pequenas aldeias em toda a Europa. O autor fez parte, entre 2009 e 2011, do Conselho da Europa que estudou muito do que estava associado ao mais temível campo de concentração no século passado, assim como continuou a sua intervenção pública para o esclarecimento do muito que permanecia ausente na memória de outros. Com fundamento na História, o autor depressa voltaria aos sítios dos crimes, sem medo nem outros receios mais imediatos de ações impensadas contra ele por uma geração que nada teve a ver com o Holocausto, mas que se ressentiu na imagem que o seu país voltava a ter de enfrentar. A obra presente é como que uma fuga para outro tempo e lugares, que vão desde a vida aparentemente tranquila em Connecticut e Cape Cod à agitação teatral e desgastante de Nova Iorque. É, assim, um outro retrato dos dias presentes na América sempre em ebulição, uma metáfora contínua do indivíduo em busca de si próprio, da verdade do seu passado e da sua identidade perante o esconderijo institucional, forçado, dos que recuperam o seu mais profundo ser num comportamento que nem fingido poderá aparecer, mesmo que reduzido a tragédias pessoais que não podem nem devem ser comparadas às que assolou e assola muito do mundo em que vivemos em direto por vias diversas.

Mãe, Doce Mar tem comocenários ainda a longa história de lendas vindas dos pioneiros americanos, os que ficaram a dever a sua salvação aos indígenas que lhes ensinaram tudo sobre a nova terra do seu sustento. O romance alicerça, também firmemente, o fio condutor da sua temática em referências literárias que são parte canónica da literatura de língua inglesa, como Mark Twain e Charles Dickens, assim como em autores de outras línguas e culturas, como demonstra uma citação de Yasunari Kawabata, todos de tempos idos e presentes, tal como a própria narrativa. O tom da sua linguagem é trágico-cómico: da seriedade das personagens e das suas circunstâncias, toda uma comunidade reinventada ri de si, e rimos nós com eles, de comportamentos que doutro modo ficariam fechados num armário hipócrita que nega a outros a sua dignidade, como acontece aqui com Frank O’Leary, filho de um magnata self-made, que conduz um Rolls-Royce, de cores tão espampanantes que vão além de toda a razoabilidade estética, oferecido pelo pai quando lhe confessa a sua vocação depois da habitual festa alcoólica da juventude e os rastos secretos atrás de si. Padre Jesuíta de descendência irlandesa em Boston, todo o seu passado fica aos poucos escancarado. Vidas aprisionadas, morte escolhida, liberdade finalmente conquistada pela vítima do segredo de outrora – nada e ninguém ficam condenados pelas gerações presentes, só o fascínio do medo que a classe social e as suas instituições mais sagradas impõem a todos. A América é essa reinvenção diária à procura de um equilíbrio que parece inatingível. A fartura das suas possibilidades contrapõe-se à força dos mais secretos desejos de quem é apanhado nas suas teias invisíveis mas reais. Patience é um nome irónico, dado a quem não a tem nesta estória, a sua memória corrosiva levando a sua “paciência”, o passado teima em nunca ser passado, parafraseando um grande escritor americano.

“Muito menos tranquilo – diz Noah em direto alguns quarenta anos depois das suas descobertas identitárias – ficava ao pensar em Patience. Não deixei passar um verão sem voltar a West Dennis. Assim que chegava à praia, palmilhava lentamente, como se fosse possível encontrar no areal as suas pegadas descalças… Quando isso acontecia, eu saía do alpendre e enfiava-me em casa. O cheiro a maresia notava-se mais lá dentro, entranhado como estava no tecido do sofá ou nas fendas da madeira, e eu preferia distrair-me com tudo o que via à volta. Uma vez, entre os livros perfilados na prateleira da estante, dei com um espaço vazio. Se foi fácil concluir qual o título que faltava, ficaria por saber o que Patience lhe fizera. Talvez o levasse com ela quando se atirou à água, talvez Tolstoi nos mentisse e a Anna Karénina tivesse morrido no mar”.

Não tenho como não dar aqui parte dos desfecho de Mãe, Doce Mar. Só a menção de Tolstoi e a sua outra suprema e longa obra simplesmente intitulada Anna Karénina diria o suficiente a qualquer eventual leitor destas linhas. Antes, queria dar as vastas referências literárias, vindas de outras culturas, que João Pinto Coelho tem chamado para as suas obras – raramente as da sua própria língua portuguesa. Tem sido sempre a direção da sua carreira na nossa literatura – sair do “território do coração”, como que para melhor se rever, sim, em realidades-outras a que se tem dedicado na ficção e nos vários espaços profissionais em que se tem movimentado ao longo da vida. Poucos entre nós têm tido esta audácia nas nossas letras. A sua obra reflete, também, essa outra guinada das novíssimas gerações lusas: estão em casa no mundo, nada e ninguém lhes é estranho, já não vivem em guetos. Boa parte literatura lusófona esbate todas as fronteiras que muitos professavam, mas agora outros vivem com toda a naturalidade.

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João Pinto Coelho, Mãe, Doce Mar, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2022. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 18 de Novembro, 2022.

Uma Vida Dinamarquesa A Uma Só Voz

Perguntam-me o que estou a escrever de momento, eu respondo: Nada.

Tove Ditlevsen, A Trilogia de Copenhaga

Vamberto Freitas

É claro que é mentira, pois Tove Ditlevsen passou a vida a escrever, desde criança até ao seu suicídio em 1976, anos após a sua toxicodependência em medicamentos legítimos, quando devidamente receitados por quem deve, ou não, através de seringas e comprimidos. Finalmente a sua obra prima em três partes foi publicada no nosso país, assim como tardiamente noutras línguas. A Trilogia de Copenhaga: Infância, Juventude, Relações Tóxicas foi publicada separadamente no original nos anos 60, e depressa, muito justamente, se tornou um clássico no seu país. Em tudo, forma e conteúdo, trata-se de um magistral romance autobiográfico, sem pudor nem desculpas, a literatura no seu mais puro estado. Isto para dizer que, pelo menos no nosso país, quase sempre se resistiu a esse género, e talvez com alguma razão: serão poucas as vidas vividas entre nós (eu incluído) que provavelmente merecem ser contadas fora das mesas de um Café ou do mexerico desavergonhado e nada consequente. A não ser que o autor tenha o saber de tornar um quotidiano que se repete interminavelmente para além de certos momentos pessoais e sociais, falando de si e dos seus mais próximos, e nesse processo convocar todo um lugar, um modo de vida própria, tudo quanto nos dá um reflexo subjetivo que nos vai inculcando ao mesmo tempo simpatia e/ou um olhar repugnado. Acima de tudo, reconhecimento da mais profunda humanidade que, mesmo sem tomarmos consciência disso, sente as mãos dadas com o mundo inteiro, como um dia escreveu Herman Melville. Há alguns tempos que não lia um romance tão convidativo em termos literários, intelectuais, numa linguagem tão fluente como num diálogo entre interlocutores amigos, atentos sem desvios mentais ao que nos é dito num desabafo torrencial, em que a prosa, neste caso, combina palavra a palavra o vernáculo e o erudito, com alusões ocasionais às outras artes por entre o desespero da criação que tanto se pode tornar triunfal ou de todo falhado. Por algumas destas razões os seus leitores dinamarqueses fazem desta obra, repetindo, uma referência canónica da sua literatura modernista.

A coragem da originalidade literária nunca foi comum. Em cada cultura existe um número de livros bem mais reduzido do que se pensa que merecem a nossa visita contínua quando das suas personagens se fala, quando delas nunca mais nos esquecemos, quando por elas passamos a avaliar cada obra seguinte, se de um género semelhante. Antes de mais, permitam-me afirmar que desde o primeiro passo deste romance esquecemos que foi escrito numa língua que suponho pouco conhecida entre nós e outros mais. Não sei comparar nada aqui com o original. Sei que a tradução/interpretação de João Reis é como se ele fosse um coautor, lembrando o que Gabriel Garcia Márquez afirmou um dia sobre Gregory Rabassa quando este traduziu Cem Anos de Solidão nos Estados Unidos – que era um outro romance, em nada inferior, muito pelo contrário, ao que ele tinha escrito em espanhol. A propósito, entre A Trilogia de Copenhaga e o romance do Nobel colombiano existem muitas semelhantes no que nos parece puro ensaio e reinvenção imaginativa, realismo jornalístico e surrealismo literário na convivência própria de qualquer vida significante.

A Trilogia de Copenhaga tem quase quatrocentas páginas, e nem um único diálogo demarcado como acontece em qualquer forma de ficção. O nome da protagonista é o da autora-narradora , e tudo nos leva a crer que a única não-ficção do romance poderá advir não da intenção de baralhar factos, tão só da memória retalhada quando recua e revê todos os acontecimentos relevantes ou marcantes da sua vida. Hoje nunca imaginamos a Dinamarca, muito menos a sua capital, nos termos em que nos é aqui representada. Muitos de nós sonhamos com a imitação de tudo em que o país bem a norte se tornou, a sociedade que poderá ter dias curtos e frios, mas de uma outra prosperidade e civilidade na sua ordem civilizacional. Eis o poder da transgressão contínua entre jovens e adultos perante o castigo que associamos a certo puritanismo religioso e profano. Recuamos cerca de cinco décadas que desembocam nos anos da morte da autora, mas a História é apenas um ruído na rádio ou numa observação ou outra, inclusive nos anos da ocupação nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Nada de surpresas neste faz de conta, tal como aconteceu entre literatos e intelectuais (alheamento que provoca as queixas de muitos) noutras latitudes durante as mesmas épocas e emergências na repressão e luta pela liberdade. A espreita do fogo inimigo traz a possibilidade da morte, não a afirmação da vida. Tove Ditlevsen reduz brilhantemente a sua pessoa e vivência à classe trabalhadora do seus primeiros anos, encafuada num pequeno apartamento com os seus pais e um irmão. É a sobrevivência do que por enquanto se chama a classe trabalhadora e deserdada, essa que um bom número de portugueses raramente ultrapassa quando nasce nessa condição. São os bairros, sim, na Dinamarca, feitos de prédios coletivos habitacionais, com os seus jovens ao lado dos caixotes do lixo a beber, a amar, deixando o destino à conta do sol que há de nascer em poucas horas. Ditlevsen começa a escrever poemas na sua infância, que só o irmão lê e comenta ao acaso nos seus limites do saber, e de verso em verso ela vai conhecendo os literatos decisivos nos arredores citadinos da sua residência e saídas noturnas. O namoro e eventuais casamentos meio oportunistas – o sexo e o seu corpo são para ela mais chatice do que prazer – nunca a deixando perder de vista o seu objetivo todo poderoso. Seu pai é um social democrata radical, orgulhoso do seu filho proletário, e totalmente desconfiado desse sonho de fazer das letras uma vida. A grandeza deste romance está nesses pormenores de uma existência de luta pessoal, olhos e mente focados na literatura, nos jornais que lhe poderão dar atenção e consequente estatuto entre os já famosos e respeitados no brumoso e tremido mundo literário. Se o consegue, deixo a outros leitores – juntamente com as infindáveis surpresas desta suprema narrativa, incomparável, para mim, na sua estrutura linear na tentativa de acertar o equilíbrio possível da sua narradora, no olhar o futuro desejado a cada instante da sua precária existência, a todos os níveis.

“Acordo todos os dias – diz Tove Ditlevsen já casada e na abertura de Relações Tóxicas, secção que encerra a trilogia – por volta das cinco de manhã e sento-me na borda da cama para escrever. Encolho os dedos dos pés, porque faz bastante frio. Estamos em meados de maio e já desligaram o aquecimento central. Durmo sozinha na sala de estar, porque o Viggo F. viveu tantos anos sozinho que agora não consegue, por mais que tente, habituar-se de súbito a dormir com outra pessoa. Compreendo a situação, e por mim não há problema, porque assim tenho as primeiras horas da manhã só para mim. Estou a escrever o meu primeiro romance, e o Viggo F. não sabe de nada. Sem que saiba ao certo porquê, sinto que, caso descobrisse que o estou a escrever, não se coibiria de o corrigir e de dar conselhos, tal qual faz com todos os outros jovens autores que escrevem para o Trigo Selvagem, o que decerto travaria o fluxo de frases que me passam pelo cérebro ao longo de todo o dia. Escrevo à mão em papel barato, amarelado, porque acordaria o Viggo F. Se usasse a sua máquina de escrever, que além de barulhenta é tão velha que devia estar em exposição no Museu nacional…”

Os longos parágrafos em cada linha nunca deixam de ser sedutores, pela sua detalhada descrição do meio ambiente, das horas em que acontecem, no retrato diáfano da condição interior da própria narradora e de quem com ela partilha todos os seus momentos, ou a solidão frequente que a paralisa no silêncio e na conversa. Aliás, a Trilogia de Copenhaga tem também como centro narrativo a própria génese da escrita da autora, ficcionada ou não, ainda mais a natureza ou o modo da composição literária. Ficamos a saber do seu primeiro casamento e do que lhe vai na alma pela simples e repetida nomeação do nome completo do seu primeiro marido – diz tudo sobre ele e ela, sem que seja necessário continuar a transcrever muito mais sobre uma manhã nado-morta num país, numa cidade como a que está aqui a ser vivida.

A Trilogia de Copenhaga: Infância, Juventude, Relações Tóxicas demorou a chegar à nossa língua, mas isso não tem importância, a grande literatura nunca envelhece ou sai do prazo de validade. Tenho muita vontade de voltar à restante obra da autora, que ainda desconheço. De resto, o outro autor nórdico que nos anos mais recentes tem causado furor literário com obras abertamente autobiográficas, e que muitos constrangimentos provocou a familiares e a outros devido a situações por ele estampadas e pouco dissimuladas em milhares de páginas, é Karl Ove Knausgard, norueguês.

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Tove Ditlevsen, A Trilogia de Copenhaga (Tradução de João Reis), Lisboa, D. Quixote, LeYa, 2022. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 11 de Novembro, 2022.

Quando Se Vive O Destino Com Um Sorriso Perpétuo

Ocupar os meus dias com pensamentos mórbidos e cínicos traz-me alguma distracção e prova que o coto bem sarado me devolveu o humor negro e o juízo.

Maria Brandão, O Quarto Do Pai

Vamberto Freitas

O que é que distingue uma novela de um romance? O número de páginas? Não, não é bem assim. Por certo que a ficção de Maria Brandão desafia os leitores mais sensíveis muito para além das questões teóricas literárias. O Quarto Do Pai, publicado recentemente, confirma o que gostaria de deixar claro por entre a ambiguidade qualificativa entre um género e outro. Para mim, trata-se de um romance com um pouco mais de cem páginas em que a sua personagem principal, cujo nome raramente é mencionado – assim como o de todos os outros que povoam estas brilhantes páginas, família e companheiros de uma longa estrada de vida. A sua fala na primeira pessoa é necessariamente caracterizada pela contenção verbal ou expressões um pouco mais alongadas sobre os pensamentos do narrador ante um presente que lhe é caro, mas, do mesmo modo, uma frase ou breve desabafo diz-nos tudo o que precisamos saber sobre todos e todas, particularmente nas memórias de dias bem mais felizes na caça a cordenizes, na criação dos respetivos cães, na procura de armas antigas por puro prazer, na apreciação da sua e outras mulheres entre tudo e todos, na insinuação no gosto ou na fantasia da cama, na recordação de amigos e, como diria Andrei Kurkov num dos seus romances, de animigos. Outra questão, estamos na ilha de São Miguel como poderíamos estar na Califórnia de Raymond Carver. A geografia tem e não tem importância num ato artístico, poderá ser um mero pormenor ao acaso. O outro feito narrativo é o de uma autora que reinventa um homem, entrando com profundidade na sua psicologia e mundividência, na ideologia prevalecente da sua classe social, no historial das suas opções, para uns livres da tradição, para outros o cerco limitativo que Ortega Y Gasset disse ser o de todos nós conforme as nossas circunstâncias. Não se trata de qualquer apropriação do outro, como no mundo anglo-americano era habitual questionar com boca torcida, mas sim de um exercício marcante de inteligência, absoluta empatia e compreensão perante vidas que poderão, ou não, terem sido observadas de perto, ou imaginadas numa linguagem cuja clareza e insinuações não nos deixam mais.

O realismo existencial do quotidiano quase nunca desapareceu depois da maçada de James Joyce e seus gémeos imitadores, o experimentalismo e interpretação estritamente literária teve a mesma sorte que a memória ambígua que também temos do quase esquecido estruturalismo nas ditas análises e interpretação de textos. Alguns assimilaram durante décadas uma outra espécie de “colonização mental”, parafraseando um grande escritor português quando falava de questões similares. Permaneceram as narrativas que tantas obras sublimes nos deram desde sempre até aos nossos dias, essas em que os recursos técnicos de um outro modernismo pós-experimentalista, formal e temático, pede sempre uma leitura atenta mas através da palavra direta, sem artifícios linguísticos que nada significam, ou que carregam em si o vazio de quem não sabe ou não quer contar uma estória. A ficção de Maria Brandão ergue-se com tal originalidade que esquecemos irremediavelmente tudo quanto certos outros escritores e escritoras entre nós faziam questão de perpetuar nos símbolos da flora e fauna, nas cansadas metáforas do sofrimento que supostamente tem sido a representação da nossa existência por aqui. Passado e presente conjugam-se na prosa desta autora escorrendo na linearidade de momentos de vida surpreendentes, e ante os quais o narrador não consegue verter uma única lágrima pela dor radical da sua doença e envelhecido corpo, o humor com que tudo percebe e vê à sua volta desde sempre. Nem um único passo que nos é dado ler se torna desconcertante. Não rimos de nada e de ninguém – pelo contrário, rimos muito com ele e com as restantes personagens nas suas imediações, no seu leito de espera em casa rodeado de cuidadores/as, ou num quarto do hospital olhando com um sorriso matreiro e alegremente incorrigível o traseiro dalgumas enfermeiras mais atenciosas.

Nunca estamos longe em O Quarto Do Pai da morte anunciada de um homem de mais de oitenta anos, proprietário abastado de uma Casa Grande rural e de imensas terras em volta, a aguentar todas as doenças e lesões corporais imagináveis, pai de três filhos e marido de uma mulher um tanto mais nova e vaidosa por entre os ais a que se habituou aos poucos, na sua própria casa e na espera frequente da ambulância de serviço, que a dada altura também é objeto dos risos do doente, que acaba eventualmente sem uma perna, mantendo tudo o resto que desgasta a cada minuto da sua vida. Vida folgada e sem tiques de privilégios permitiu-lhe dedicar-se preferencialmente, como já foi referido, à alegre caça ali para os lados da Povoação. Enquanto lhe torcem e retorcem nas camas da sua invalidez devido a uma queda mal dada no já longínquo passado do recreio preferido com cães vivos e pássaros mortos, ele vai relembrando tudo isso nos seus relatos múltiplos e divertidos, limpos de qualquer auto-comiseração. Nas suas memórias ficaram as correrias dos seus primeiros carros com nomes próprios aqui na terra até às suas viagens por vários países como juiz de concursos de raças caninas, que nem sempre acabam bem, para gáudio de que quem o ouve. Sem heroísmos de qualquer espécie, sem os preconceitos de épocas distintas num país como o seu, quase agradece a todos os deuses cada momento da sua longa caminhada, sem nunca deixar de pressentir que o seu fim definitivo ronda por perto. A sua redenção, a sua recusa aos olhos molhados de qualquer choro em vez das constantes tiradas cómicas numa ou qualquer situação de emergência, mais sentida pelos médicos do que por ele, fazem do leitor quase como que com um comparsa na boa vida enquanto lhe tira o medo do que eventualmente poderá ser a sorte de muitíssimos outros – dentro e fora do texto. Esquecem a beleza das hortênsias, o céu nublado com boas abertas, e até o mar que tudo dá e tira – uma ilha é um continente pequeno, o mundo inteiro em miniatura epistemológica. A grande literatura poderá também descrever a geografia do lugar, o que acontece como pano de fundo em qualquer narrativa ficcional. O centro permanece sempre a tentativa de penetrar a alma e pensamentos de qualquer personagem maior e significante. Quando isso acontece num romance através de cada palavra e fulgor narrativo, mais do que dar continuidade a um suposto cânone literário – corta com ele, e provavelmente inicia outra visão da arte linguística, por assim dizer.

“É fácil julgar os outros – diz o patriarca doente e bem lúcido – quando se tem dinheiro para gastar e civilidade de berço para esbanjar. Um velho doente é um incómodo tremendo, uma despesa acrescida, um chapadão na cara de quem se julga eternamente belo e saudável, que sei eu das motivações de quem não consegue conviver com isto? No fundo da minha cama articulada e coberta com lençóis frescos de algodão, no meu quarto espaçoso e arejado, no meu jardim com vista para o oceano, a decadência instala-se tão depressa como no recôndito de um lar ou de um vão de porta. Mais cheirosa e confortável, é certo, maquilhada e plastificada como uma ex-modelo de topo, mas de igual modo pressentida.

A propósito, podia eleger confortável como a ‘a palavra do ano’ a par de posicionado e levante, entre outros acrescentos vocabulares ao meu dia-a-dia, como resguardo, fralda, manápula, luvas de vinil, preservativo urinário ou penrose, no original inglês, para parecer mais elegante, algália, saco de urina, calcanheira, corpitol, meia de compreensão, cadeira sanitária e por aí fora até esgotar a oferta de produtos de geriatria de uma loja médica. ‘Sente-se confortável? Está bem posicionado? Vamos fazer levante?’ Digo sim a tudo, se disser não o massacre nunca mais acaba e vejo-me impedido de recolher aos pensamentos que me trazem alegria.”

Que nos leva a ler ficção ou poesia, em vez de ensaio nas suas diversas formas? Não dou um tiro nos pés, só relembrar que uma grande peça literária nunca mais nos deixa, mesmo da estante antiga comunica e chama-nos de novo, como que num grito a dizer que não estamos sós, que a nossa sorte, boa ou má, em nada se diferencia de todos os outros em toda a parte. Um dos segredos da grande literatura está nos pormenores que definem todo o nosso ser, palavras ditas e gestos de representação refletem sempre as nossas contradições na caminhada de sermos e estarmos perto ou longe dos outros.

Maria Brandão formou-se com uma Licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses, e fez uma pós-graduação em Assessoria Linguística e Tradução, na Universidade dos Açores. É autora já reconhecida pelos seus leitores de Corpo Triplicado, de 2018, Enlouquecer é Morrer numa Ilha, de 2020, e Talho, que faz parte da coletânea de ficção e outra escrita, Avenida Marginal I.

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Maria Brandão, O Quarto Ocupado, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2022. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 4 de Novembro, 2022.

Vida E Morte Num Romance Ucraniano

Ainda não tinha acabado de beber a primeira caneca de chá quando se ouviu um estrondo ali perto. As janelas estremeceram tão alto que lhe doeram os ouvidos. – Cabrões de merda!

Andrei Kurkov, Abelhas Cinzentas

Vamberto Freitas

Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov, nascido em São Petersburgo em 1961, foi finalmente traduzido ao Português e publicado há poucas semanas pela Porto Editora. Trata-se do mais importante romancista ucraniano, cuja obra está traduzida em mais de quarenta duas línguas. Kurkov esteve em Portugal recentemente para o lançamento deste seu livro na Fundação Gulbenkian, e manteve uma conversa pública com a jornalista luso-ucraniana Iryna Shev. Continua a viver na Ucrânia sob o fogo bárbaro dos russos, tendo dito também há dias que por agora deixou a ficção enquanto ajuda o governo de Kyiv nas suas comunicações, em resposta rápida às do Kremlin. Confessa que deseja regressar logo que possível à literatura. Ainda antes de entrarmos nesta narrativa, escrita e publicada em 2017, já com parte do seu país ocupado e em guerra, como se sabe, destaca-se uma primeira ironia que diz muito sobre identidade e relacionamentos nacionais no conflito em curso. O autor escreve em russo, disse numa entrevista televisiva internacional, e que vai continuar a escrever em russo, mas nunca mais publicará nessa língua. Deduz-se que ele verterá depois a sua obra para ucraniano daqui para a frente. A nossa pátria é uma língua, ou algo muito mais complexo e profundo? Como era, creio, totalmente desconhecido por uma boa parte dos leitores do nosso país, tomemos nota das diversas apreciações internacionais. Comparam-no a escritores de grandeza, como o russo Mikhail Bulgakov, o japonês Haruki Murakami, e ainda o britânico Daily Telegraph declarou-o “Um Kafka pós-soviético”. Não será nas linguagens ou como artífice ficcional mais ou menos surrealista cuja prosa deve ser encarada, mas sim na própria representação da realidade necessariamente estranha e desusada em pequenas aldeias bombardeadas até à morte total ou à fuga desesperada dos seus habitantes. Em cada passo e página o leitor reconhece de imediato o que vê diariamente nos ecrãs, mas numa visão limitada à frieza do momento instantâneo. Aqui, acompanhamos não só o percurso das bombas e a sua detonação, mas sim a alma das personagens, o horror voando nos céus e em cada espingarda, a destruição e solidão em que todos vivem minuto a minuto, as contradições de seres humanos apanhados numa teia de lealdades e traições vivendo e atuando lado a lado numa rua qualquer das suas vidas.

O andamento narrativo de Abelhas Cinzentas mais parece um contraponto direto, deliberado, ao dia a dia de violência militarizada totalmente fora das regras acordadas em convenções entre alguns países no mundo. Numa aldeia do Donbass, Pequena Starhorodivcka, restam apenas dois habitantes, o protagonista de nome Sergey Sergeyich, e aquele que ele chama de um animigo, Pashka, em amena fricçãodesde a infância até aos dias de guerra correntes, residentes a dois passos um do outro em ruas diferentes, mutuamente desconfiando-se na sua vivência quotidiana. Toda ambiência na aldeia, situada na chamada “zona cinzenta” que separa os beligerantes, parece uma de desespero calmo (passe a contradição), até à inevitabilidade do pior que poderá acontecer a qualquer minuto do dia ou da noite. É a “normalização” da miséria e do medo. De quando em quando o protagonista caminha a pé rumo a uma aldeia vizinha sob o comando dos militares ucranianos, onde troca o seu melo por algum pão e pouco mais com uma senhora idosa sua amiga. O animigo, por outro lado, visita uma outra cidade cheia dos que Sergeiych insulta chamando-os os seus “irmãos”, separatistas pró-russos. Visitam-se com certa frequência, partilhando vodca de qualidade caseira, ou venenosa quando comprada numa mercearia que tinha já fechado há algum tempo.

Sergeyich passa o seu tempo numa rotina inconsequente, a não ser a cuidar das suas colmeias. Do seu quintal avista com binóculos a frente de batalha, e torna-se obcecado por um soldado morto na neve, sem saber a que lado pertence, mas dói-lhe que ninguém o vá buscar para um enterro condigno. A irreparável humanidade no meio da morte. Um dia um soldado bate-lhe à porta, pois também o vigiavam das suas trincheiras no Donbass fronteiriço. Abriu a porta sem saber se era um dos seus ou um russo. Depressa o soldado identificou-se como sendo ucraniano, e diz chamar-se “Petro”, o que leva Sergeyich a corrigir para “Peter”, nada da versão russa por ali. A sua relação acompanha-os intermitentemente durante toda a narrativa. Antes da partida deixa uma granada a Sergeyich para proteção, e leva o telemóvel deste para o campo de batalha para ser recarregado. O mundo das pequenas coisas, o mundo da sobrevivência básica no terror em volta. Perante a escuridão dos dias e a incerteza e o terror da noite, o hábito, todos os gestos de resistência dos seres humanos, dá lugar ao humor – e a humores menos agradáveis – como que numa atitude de salvamento possível, a força da vida ante o pior imaginável. A sua mulher, Vitalina, tinha-o deixado e voltado à casa de nascença, em Vinnytsia (está no mapa), devido a uma cómica discórdia há anos no nascimento da sua filha. A mãe insistiu no nome “Angelica”, aparentemente um nome considerado ridículo por aqueles lados, inusitado na sua língua. Morria agora de saudades dela e da filha, já adolescente nos tempos da guerra. Outros passos de riso sem tréguas é o modo como quer esquecer e denegrir a memória da União Soviética, levando-o, entre outros suspiros passageiros, a arrancar certo dia o nome da sua rua – LENINE – e colocá-lo na rua do seu único e suspeito vizinho, o animigo.

“Recordou-se de como costumava descer às minhas – Sergyeyich está aposentado por invalidez como consequência de ter trabalhado nas entranhas da terra a extrair carvão – em gaiolas, a remoer os perigos e a insignificância do seu trabalho. As inspeções de saúde e de segurança podem existir numa mina? Nenhumas. Ainda assim, os administradores das minas convidam-no para comer como se fosse uma visita de honra, serviam-lhe vodca como a um irmão e despediam-se calorosamente como se fosse um parente adorado. Como consequência, cada uma das suas viagens de trabalho tinha dois sabores: amargo e doce. Toda a gente tentava enganar os outros, e toda a gente abraçava os outros. Enganavam por necessidade, abraçavam em bebedeira fraternal – e, durante o tempo todo, os mineiros fitavam-no com a mesma pergunta no olhar, que às vezes também continha uma ameaça evidente: ‘Não vais mudar nada por aqui, pois não?’”

Todo o discurso omnisciente de Abelhas Cinzentas é um desdém mais do que acusatório. Não existe aqui qualquer diatribe contra o seu passado e presente, nem sequer contra o inimigo russo que vem destruindo sistemática e violentamente o seu país desde 2014. A dada altura o protagonista sem rancores decide ir visitar de surpresa um colega tártaro, que tinha conhecido algures dentro do país num encontro de apicultores. Conduz até à Crimeia já ocupada, que ainda permitia a entrada – muito vigiada – de alguns ucranianos. Descobre num arrojado ato a pedido da mulher do seu conhecido que tentasse descobrir no quartel-general dos serviços secretos russos a causa do desaparecimento do seu marido há dois anos. Sem nunca o admitirem, tinha-no assassinado, e, como gesto de abrandamento falso, devolveram de imediato o cadáver para um enterro dentro das suas tradições. Como sempre, o narrador mantém-se com palavras sóbrias em tudo que está a acontecer numa Ucrânia martirizada. Sergeyich emite juízos de valor – não pela retórica que o leitor provavelmente espera, mas simplesmente ao descrever friamente todas as situações que vive, todo o carinho com que é recebido pela família tártara, todas as personalidades russas que na Crimeia revistam a sua documentação e o seu velho Lada sem vidros e carregado das colmeias que tinha transportado nestas suas andanças, sempre por entre avisos de que não pode permanecer na “Rússia” para além do tempo especificado no seu passaporte.

Uma vez mais, Abelhas Cinzentasnunca leva a juízos apressados por parte do seu narrador sobre o conflito em curso, ou tal como tem sido vivido e sofrido pelos ucranianos desde o começo. No entanto, o tom das suas linguagens não pode nunca ser ignorado. O contexto histórico depende em primeiro lugar do conhecimento que cada um traz ou trará a estas páginas, ou não, da complexa deriva histórica nos dias que correm – e que leva o mundo a questionamentos e ação direta e indireta cada vez que as bombas caem, e se contam os mortos e feridos de todas as idades e condições de vida naquela vasta geografia física e humana. Só que o leitor, qualquer leitor, não esquece as circunstâncias extremas de toda uma nação a enfrentar a raiva do seu inimigo, em que até a língua e cultura são alvos de destruição. Depois da leitura deste romance nunca mais veremos ou leremos uma reportagem como o fazíamos até agora sobre as vítimas da violência numa pequena e pobre aldeia ucraniana, ou como agora, numa grande cidade de nomes que desde 2014 nos eram provavelmente desconhecidos.

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Andrei Kurkov, Abelhas Cinzentas (Tradução de Célia Correia Loureiro), Porto, Porto Editora, 2022. Pulicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental,

Herança E Amor Na Sociedade Portuguesa

Mas a minha mãe não tem neuras, tem opções sentimentais complicadas, desassossegos, como ela gosta de dizer, acho que por causa do seu amado pessoa.

Graça Videira Lopes, A Casa Ocupada

Vamberto Freitas

A Casa Ocupada, de Graça Videira Lopes, foi um romance finalista do Prémio LeYa de 2022. Desconhecendo a autora até agora, foi o suficiente para eu o folhear e em poucas páginas de leitura atenta decidir que o queria ler. É também para isto que um prémio literário de prestígio serve, acima de tudo – colocar alguns os leitores em atenção, e talvez chamar outros mais renitentes. O “romance de família” não é novo entre nós, particularmente desde Eça de Queirós. Quando acontece com esta qualidade é uma dádiva para quem gosta de literatura séria, um ato de revisão ou acompanhamento de um autor ou autora capaz de nos fazer olhar de novo a nossa própria sociedade, as suas insistentes e supostas tradições, a sua reinvenção, sim, e a originalidade com que as suas personagens cortam com tudo isso, e, sem nada esquecer, interpretam o passado à sua maneira, subvertendo tudo o que delas se espera, a inevitável continuidade de estatutos sociais dando lugar a outra vida pessoal numa caminhada para a liberdade possível numa pós-modernidade sempre ambígua, já sem qualquer poder institucional sobre o nosso estilo de vida, e sobretudo a negação a cada passo do que outros pensam ser a imutabilidade da vida coletiva amarrada aos ditames dos diversos poderes desde tempos imemoriais, tudo o que eram referências mais ou menos englobantes e condenatórias de qualquer sociedade. A memória dos nossos antepassados não é só uma seleção mental, é acima de tudo uma memória que deixa necessariamente muitos espaços em branco, tal como a autora de A Casa Ocupada nos apresenta a linhagem de cada personagem, e a sua correspondente interpretação de famílias, de um tempo ido, de ações incertas, de sentimentos atribuídos aos que os antecederam num lugar e tempo. De qualquer modo, o leitor nunca deixa de se reconhecer em determinados passos da narrativa, ou ainda mais de reconhecer a condição existencialista que pode ou não ser a sua, mas plausíveis na sua experiência de vida entre outros. Um bom romance é sempre esse jogo de espelhos que confirma ou distorce imagens, ou que passa como “realidade”.

A Casa Ocupada inicia-se nos dias que correm, e através da analepse cobre vários tempos da nossa História, desde o fim do século XIX nos anos antecedentes à proclamação da República. De vidas pessoais vai dando conta de toda a movimentação da nossa sociedade entre monárquicos e republicanos, com a agulha narrativa virada para dois lados prósperos em conflito aberto. Um brasileiro torna-viagem chega a Lisboa em 1875, e compra um palaceto na Junqueira aonde se desenvolve toda uma vida dos seus futuros herdeiros. Júlia e Pedro hoje estão hoje no centro e que, juntamente com outros como Sofia e Álvaro, vão tentando reconstituir esse longínquo passado dos seus, familiares e amizades condizentes ora com o mesmo estatuto social, ora relembrando que mesmo nessa esfera dos anos seguintes já alguns iam de monárquicos a comunistas convictos, e sem medo. A casa fundada por José Anastácio dos Santos Rebelo passa a um quotidiano de vidas que escondiam, tal como hoje, as transgressões a que raramente a humanidade foge, desde a política a traições de cama e a sucessões de casamentos ou fingimentos comportamentais. Entre Júlia e Pedro, que recuperam a velha casa construindo um apartamento de luxo onde raramente vivem, preferem outros locais de Lisboa, e outros mais chegados particularmente o outrora decadente lado oriental da capital, que nos anos 90 se tornaria o poiso caro das classes médias altas e de outros muito mais ricos. O ciclo de vida e tempos completa-se aqui: um brasileiro que havia feito fortuna na mono-cultura do Café no hemisfério-sul substituído agora por uma linhagem de profissionais de sucesso nas áreas principais de uma sociedade tecnológica e de todo especulativa. A narração oscila de tal modo subtil entre o discurso direto e indireto que o leitor vai testemunhando o quotidiano cheio de nada entre todas as personagens que percorrem Lisboa, e visitam fazendas ancestrais em Santarém, entre outras localidades do país e do estrangeiro, Inglaterra neste caso, Londres como que um segundo refúgio de alguns tecnocratas portugueses, carreira e cama intimamente ligadas, o passado repartido e intermitentemente a condicionar memórias e a intrometer-se em relacionamentos condenados à instabilidade, às traições de sempre, o andamento dos dias quase sempre nublados pelo cansaço do que se havia programado numa repetição inconsciente de personagens que apenas giram dentro do ciclo vivencial que só parece “moderno”, mas que afinal pouco se distingue dos que os antecederam. Este romance de Graça Videira Lopes faz-me lembrar por vezes o tema principal dos melhores romances que li ao longo dos anos: a ilusória mudança de tudo nesse ciclo de culturas antigas como a nossa. O vazio tornado num vaivém sem muito sentido, a vida cheia de pequenos prazeres e intenções que nada significam, as vidas que escondem esse Nada nas andanças irrelevantes em pequenas ilhas rodeadas de terra por todos os lados (a sorte de todos que vivem em continentes), com o Tejo ali ao lado a oferecer beleza e tranquilidade indiferentes, só que criando a ilusão, nunca aqui confessada, às classes mais abastadas em prédios privilegiados para ele virados de que a sua existência está um nó acima da dos outros.

Podem certos teóricos afirmar que a literatura, mimética ou não, não pode nunca ser interpretada como um retrato que vá além de uma redoma literária. É, muito pelo contrário, e nas suas melhores páginas, o outro espelho, uma vez mais, que nos devolve o outro – e as imagens múltiplas que porventura temos de nós próprios. Não fora assim, e não valeria a pena ler nada, nem escutar ninguém que no silêncio reproduz o ruído da nossa existência, fechados a sós num quarto barafustando contra tudo e todos, como o “homem subterrâneo” de Dostoiévski, numa brilhante e absoluta ironia do grande escritor, mas que mesmo assim reflete os estados de alma que todos vivem episodicamente, e com acrescida frequência nas presentes sociedades à deriva. Temos aqui o outro lado, a sociedade escancarada, o lugar também do leitor com experiências muito suas, mas que não poderá ignorar os laços com esse outro num reconhecimento de como somos todos iguais na nossa imaginada diferença.

“Ainda eram quatro da tarde – diz a narradora na sua persistente indiferença generalizada vinda de sempre – quando Júlia começou a subir a Rua do Alecrim. Tinha estacionado o seu pequeno Honda azul perto do Cais do Sodré e foi seguindo a pé, tencionando gastar a hora que faltava a flanar pelo Chiado e redondezas, sem plano nem pressas. Quando era miúda, acompanhava muitas vezes a avó Carminho sempre que ela vinha a Lisboa e, repetidamente, queria ‘ir à Baixa’, um programa que depois cumpria apenas para lhe dar gosto e sem entusiasmo excessivo. Mas a baixa da sua infância, a Baixa dos prédios a ameaçar ruína e das lojas decadentes e semi-desertas assumiria finalmente o seu destino de Fénix renascida, elevando-se agora sobre o rio numa confusão barroca de cores, de turistas e de lojas de luxo, numa reencarnação cosmopolita que a própria avó Carminho teria dificuldade em reconhecer”.

Eis aí a continuidade. Desde há muito que sabemos que a descrição dos exteriores que rodeiam uma personagem fictícia, a escolha afinada de palavras ou passos narrativos, trazem-nos a interioridade de quem fala de sentimentos, de atitudes perante o que vê num relâmpago do seu olhar e tudo transmitir a quem a “escuta”. Este romance pertence também, pelo menos no seu contínuo recuo temporal, à ficção histórica, não só pela sua reconstituição imaginativa dos progenitores das personagens em causa, como ainda mais da movimentação daqueles anos em que um regime deu lugar, radicalmente, a outro, sob o qual vivemos todos. Relembra ainda as lutas ideológicas que se prolongaram, até ao 25 de Abril de 1974, com uma breve cena de ocupação arbitrária e algo cómica do velho palácio citadino na Junqueira por parte dos militantes do costume no nosso como noutros países em processos revolucionários.

A Casa Ocupada é o primeiro romance de Graça Videira Lopes. É doutorada em Literatura Medieval pela Universidade Nova de Lisboa, tendo sido aí professora, e hoje aposentada. Escreve-se na capa que deu aulas na Universidade de Massachusetts, em Barcelona e em Paris VIII e Sorbonne. A sua experiência literária inclui ainda a publicação de poesia e ensaio, assim como uma continuada atividade e investigação na área da sua especialidade.

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Graça Videira Lopes, A Casa Ocupada, Lisboa, D. Quixote, LeYa, 2022. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 14 de Outubro, 2022.

Quando A Itália Tremeu Muito Antes De Giorgia Meloni

Quando Giovanni acabou de ler a carta, a comoção foi grande. Era a voz de Aldo Moro que ouvíamos, vinda da prisão do povo.

Teresa Martins Marques, Não Matarás!

Vamberto Freitas

Acabei de ler o grande (grande em forma e conteúdo) livro de Teresa Martins Marques, Não Matarás!: Romance De Um Crime. A sua prosa desenvolta e linguagens de todo significantes fazem-nos balançar na leitura entre a ficção e a realidade, ou melhor dito, entre a ficção e a História, assim com um “H” maiúsculo dado a tragédia e o tremor político internacional que foi o assassinato de Aldo Moro pelas Brigate Rosse/Brigadas Vermelhas italianas precisamente a 9 de Maio de 1978. É claro que a minha epígrafe é de todo irónica – “prisão do povo”? As páginas desta história disfarçada de ficção de Teresa Martins Marques – para além de tudo o que aconteceu com Aldo Moro, e que agora é revisto pela autora – sobre a sorte da mulher pobre e oprimida são simplesmente geniais, o que, para mim, não foi surpresa alguma depois da leitura da sua outra obra de fôlego, A Mulher que Venceu Don Juan (2013). No meu caso, pouco conhecia sobre aquele acontecimento fatal ou do percurso político do grande homem que foi Aldo Moro, fora do que os jornais norte-americanos na altura traziam sobre a instabilidade da Itália e arredores no sul da Europa, e especificamente sobre o sequestro seguido de assassinato do então líder da Democracia- Cristã, o partido que governava o país há muitas décadas após a II Grande Guerra. Desconhecia o inabalável “carácter”, a bondade, a religiosidade sem hipocrisia, e acima de tudo a generosidade de Aldo Moro. O tratamento do Poder em geral neste romance-história é devastador para a já pouca crença num mundo ainda e sempre e sem pudor entre a liberdade e a corrupção, entre a dignidade da política democrática e as suas traições globais, entre a vida e a morte. Claro que não estou aqui a escrever como qualquer especialista instantâneo sobre todas estas questões, tão-só como leitor de uma obra suprema em termos de arte linguística, ou como receptor da informação que até agora desconhecia, e sobretudo como leitor da agilidade da autora de nos entregar anos de investigação directa sobre os acontecimentos que mudaram para sempre um país de incontestável importância para a Europa, e, numa visão mais alargada, para nós todos. É esse, no seu melhor, o que resulta “da grande arte”, com ou sem ironia, as duas opções narrativas da sua autora, pouco comuns na nossa literatura. Não Matarás! é esse exercício literário que combina os factos com a imaginação, a dor da nossa humanidade em busca perpétua da redenção – como olhar Guernica de Pablo Picasso, e sentir o horror que a repetição, como diria George Santayana, da ignorância mortífera.

Suponho que tenho de dar uma vaga ideia da trama de Não Matarás! Aldo Moro foi sequestrado pelas Bigrate Rosse numa avenida de Roma a 16 de Março de 1978, tendo os chamados “revolucionários” assassinado todos os seus guarda-costas no carro. Ao serviço de quem? Deles próprios, ou de outros? Não há respostas definitivas até hoje. Aldo Moro tinha acabado de assinar o “compromesso storico/compromisso histórico” com o Partido Comunista Italiano, sob a direcção de Enrico Berlinguer, que por sua vez tinha anunciado o “euro-comunismo”, atirando fora a fantasiosa “ditadura do proletariado”, a primeira vez que um partido social-democrata, a Democracia-Cristã, admitia, em nome da estabilidade do seu país, tal inesperada aliança. Um eminente Católico, ex-chefe de Estado e algo muito mais como referência em Itália, a entender-se com o inimigo do Ocidente. Um novo baralho de cartas estava na mesa. A quem servia este compromisso? A nenhuma das instituições do Sistema e aos seus mandantes máximos, muito menos aos restantes alto líderes do partido de Aldo Moro, a Democracia-Cristã. Todas as forças recusaram atender ao pedido do homem maior que tinha tentado levar todos a bom porto no auge na Guerra Fria, e todos se recusaram a poupar uma vida em nome da firmeza contra os terroristas: Os EUA, por razões óbvias, desconfiados de tudo e todos, histéricos, a União Soviética pela traição do PCI, e mais gravemente todas as forças do poder italiano, como muito provavelmente a tenebrosa loja maçónica P2, e cruelmente Berlinguer, depois de ser chamado tentativamente às responsabilidades da governação, ou ao seu apoio táctico. Pior do que isso, para um cidadão Europeu e dos Estados Unidos, Teresa Martins Marques dá voz indirecta a muitos historiadores que estão certos que os serviços secretos anglo-americanos colaboraram activamente para que Aldo Moro fosse morto a tiro como foi. Quem pagou ou recrutou as Brigate Rosse para o trabalho mais sujo imaginável – a tortura e morte certa de um cidadão ao serviço do Bem do seu país, e de todos nós? O contínuo suplício no cativeiro de Aldo Moro para que negociassem a sua libertação em cartas quase diárias aos seus supostos aliados políticos e “morais”, nas mãos de criminosos que se auto-denominavam de combatentes libertadores, de nada valeram porque nunca chegaram ao seu destino, e de nada, soubesse depois, valeriam, a sua família sempre nos seus pensamentos e alma. Arrepia o leitor, pelo menos este. Poderoso.

“Sei agora – diz a narradora, que foi também a sua guarda involuntária e de uma sentida humanidade revelada ao longo de toda a narrativa no cativeiro ou ante-câmara da morte num apartamento em Roma – que eles moveram céus e terra durante o sequestro. Em vão fizeram um abaixo-assinado para forçar o governo às negociações com as Brigate Rosse. No livro de Giorgio Aldo Moro II Professore, ressalta em cada página a sua admiração amorosa pelo Mestre. A partir do livro realizaram um filme documentário onde a admirável personagem Lucia, alter ego de Fiamma, a jovem revolucionária, me comoveu até às lágrimas”.

Fala aqui dos esforços de antigos alunos para livrar os seu Professor da morte certa e violenta, como acabaria por ser dentro de um carro e garagem escondida. Quase mais ninguém o fez, porque mais ninguém o queria fazer.

Não Matarás! está cheio de nomes da vida e políticas reais da época, tudo reconhecido pelos leitores mais atentos daqueles anos de chumbo, e agora de todas as hipóteses respeitantes à manobras secretas para que Aldo Moro fosse, uma vez mais, assassinado. A cobardia e o cinismo têm nomes próprios aqui. O romance abre com incidentes iniciais, com o primeiro capítulo intitulado “O comboio da morte”, seguido logo por outro, “Ameaça americana”. Trata-se de uma viagem que Aldo Moro faz aos Estados em Setembro de 1974, e, entre outros afazeres, assistiu a uma missa na Catedral St. Patrick em Nova Iorque. Aldo Moro tem ainda um encontro com Henry Kissinger, esse génio de sotaque estudado e cultivado: “Henry Kissinger, sem o menor pudor de ingerência, abre fogo contra a possibilidade de abertura da Democracia-Cristã ao Partido Comunista Italiano, num governo de solidariedade nacional… Corrado Guerzoni, adido de imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, relata o confronto ocorrido na Blair House entre Aldo Moro e Henry Kissinger… Se eu fosse católico como o senhor – disse-lhe o homem que ainda recentemente piou sobre a a guerra na Ucrânia – acreditaria no dogma da Imaculada Conceição. Mas não sou católico e não acredito no dogma nem na evolução democrática dos comunistas italianos!” Agora fora do texto: os portugueses conhecem muito bem a figura e os seus desejos para Portugal durante o PREC de 1974-1975. O falecido jornalista internacional de investigação, Christopher Hitchens, publicou o livro The Trial of Henry Kissinger (2001), chamando Kissinger de “criminoso de guerra”, como Conselheiro para a Segurança Nacional e como Secretário de Estado nos mandatos de Richard Nixon e Gerald Ford, nas intervenções militares ou em golpes de estado nos seguintes países: Vietname, Bangladesh, Chile, Chipre e Timor-Leste. Kissinger nunca processou o grande jornalista anglo-americano.

Não Matarás!: Romance De Um Crime é uma peça pouco, ou nada, habitual na literatura portuguesa, combinando uma brilhante prosa ficcional na forma de um thriller vira-páginas, juntando a História vivida à imaginação pura. O romance acaba com sua narradora em Lisboa, onde começa a juntar as complexas peças do triste xadrez envolto na morte de um dos maiores estadistas da nossa geração. Se pagou caro, muito injustamente, a sociedade italiana também. Quase todas as instituições políticas desapareceram do mapa: a dita Democracia-Cristã, o Partido Comunista Italiano, e o Partido Socialista. A América não está nas melhores condições dentro e fora das suas fronteiras. Donald J. Trump, e agora Giorgia Meloni. A pílula poderá ser muito perigosa, nos seus efeitos secundários, nos dois lados do Atlântico.

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Teresa Martins Marques, Não Matarás!: Romance De Um Crime, Lisboa, Gradiva, 2022. Publicado no “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 6 de Setembro, 2022.

O Mar E As Ilhas Açorianas Sempre Desobedientes À Meteorologia

Os deuses tomaram-se de fúria e começaram a soprar mais do que era necessário e suposto, e o mar revoltou-se sobremaneira.

Volta Aos Açores Em Quinze Dias, José Pedro Castanheira

Vamberto Freitas

Algumas advertências, só por assim dizer, ao autor deste inusitado Volta Aos Açores Em Quinze Dias: Diário De Bordo De Uma Viagem Para (Não) Esquecer, José Pedro Castanheira, cuja seriedade no seu jornalismo dos tempos de O Jornal e depois da sua longa carreira no Expresso até à sua recente e suposta aposentação, autor ainda de vários e marcantes livros, que ele nem cumpriu (mesmo que involuntariamente) a promessa feita a um corvino há uns bons anos, nem levou a sério o aviso de Onésimo Teotónio Almeida, que prefacia este livro. Em trabalho na nossa mais pequena ilha, tinha-lhe sido pedido que não falasse mal do Corvo, mas que também não falasse muito bem para não provocar mais uma avalanche de turistas. O autor auto-denomina-se continuamente neste seu Diário de “escriba”, depois da sua fulgurante carreira em dois dos mais importantes e históricos jornais do nosso país. De nada valeu. Só que o seu humor ante desafios açorianos diversos terão o riso e muito agrado do leitor, um virar-páginas no prazer de cada frase e entrada sobre estes seus dias de passagem e repouso nas ilhas, que ele tão bem conhece há décadas, e no mar dos Açores que o fez balançar inesperadamente no vento e em ondas de quatro metros a bordo do veleiro Avanti (alugado à empresa Sail Azores), na companhia de familiares e do comandante amigo, que vou nomear um pouco mais adiante. Os nossos conterrâneos do outro lado do mar que vão ler este magnífico Diário terão uma de duas reacções: visitar as ilhas imediatamente, ou vir cá desafiar os deuses do mar e do mau humor, todos eles lembrados aqui. “Ora, qualquer açoriano, – escreve Onésimo Teotónio Almeida no prefácio a Volta Aos Açores Em Quinze Dias, intitulado “Ala Bote” – por mais crente que seja no Santo Cristo e no Espírito Santo, desconfia de boletins meteorológicos. Diz-se que aqui acontecem as quatro estações num dia, só que o vento e a chuva ocorrem em qualquer uma, sobretudo em todas”. Por certo que José Pedro Castanheira foi “surpreendido” por tudo o que ele já conhecia, mas o leitor açoriano depara-se nestas páginas com outra visão, na qual o mar manso ou revolto se integra perfeitamente no que vai nas nossas ruas, nas nossas cidades, nos nossos sítios, sem necessariamente darmos por nada, a habituação fazendo-nos assobiar para o lado, guarda-chuva na mão.

O ângulo crítico pertence a nós residentes, a descoberta de outras belezas e originalidades são por outros ainda mais apreciadas, especialmente quando um escritor interliga cada uma dessas nossas ruas e cidades à História e a estórias que outros já viveram e alguns escreveram pelos mais inusitados olhares e entendimentos. Castanheira sabe tudo isso, e menciona-os de quando em quando, desde Raul Brandão a Vitorino Nemésio, esses continentais e ilhéus que nos definiram e devolveram a identidade da nossa geografia e alma. O autor brinca com os géneros literários e demais relatos, perfeitamente consciente que o suspense da sua aventura marítima (não-trágica) está frente a um bravo povo que treme sem medo diária e repetidamente em São Jorge e nas outras ilhas, reerguendo sem parar tudo que é a sua vida. Falar do arquipélago açoriano é falar obrigatoriamente do mar que tanto nos aprisiona como nos dá asas, os seus vulcões debaixo de água e da terra a génese da criação e da morte à espreita.

Volta Aos Açores Em Quinze Dias foi uma viagem planeada em Lisboa, e adiada logo que o coronavirus nos encerrou em casa em 2020. Foi concretizada em Maio deste ano, pelo autor e alguns dos seus familiares mais próximos, um sobrinho, Nuno Torka Castanheira, Nuno Castanheira, seu irmão, Afonso, seu filho, e o comandante (skipper) João Blasques. A partir da marina da Horta iriam – “iriam” – a sete das nove ilhas, ficando de fora as Flores e o Corvo, suponho que por razões de mares, lonjura ou tempo. Quando partem do Faial e de Santa Maria rumo à Graciosa enfrentaram uma tempestade à moda do mar açoriano, que lhes fez regressar a meio, com o veleiro em dança e os todos os esforços da tripulação para não mergulharem contra a sua vontade, eles e o veleiro a dar tudo contra ventos e marés. Os pormenores são dados numa escrita calma, originalmente dirigida por e-mail a amigos em toda a parte e à família em Lisboa. Num dado momento desse “bailo corrido”, nas palavras do autor, desta chamarrita marítima, o seu telemóvel cai-lhe da algibeira de um colete de guerra (que outro jornalista em campo nosso havia ostensivamente mostrado aos seus telespectadores a partir, já se sabe, do Médio Oriente), e o desespero de José Pedro Castanheira dá lugar à comédia pura de lamentações, a prosa fazendo-nos rir em voz alta quando ele insinua a nossa dependência modernaça ou vício digital. Um dos seus correspondentes entrou em pânico – eventualmente diz ter ouvido o som “glu glu glu” — porque não sabia que o telemóvel do autor do Diário estava a milhares de metros abaixo das águas atlânticas. Os quinze dias de aventura prolongaram-se, levando alguns à descoberta do “pico do Pico”, ao regresso do gin no mítico Peter Sport Café e a outras andanças nos arredores de mar e terra. José Pedro Castanheira, durante essa noite de chuva e vento entre o Faial e a Graciosa sentiu o seu organismo a fraquejar, e o diagnóstico era mesmo o covid, tendo sido confinado por especial favor num alojamento local da Horta, que mais parecia um velho hotel, e que ele diz ser do século XIX apesar do seu serviço e simpatia muito mais avançadas. Nunca lhe falta, uma vez mais, o humor e a leve ironia de uma escrita que prende o leitor de tal modo que quase ficamos sem saber se estamos a ler um romance ou o Diário que realmente é este livro. O autor repete, adivinho que com um riso dúbio, que a sua carreira de jornalista não lhe permite inventar nada. Até quando, no fim e já só na Horta (os outros tinham regressado a Lisboa), decide reescrever sobre a medonha noite de todos os desafios contra o Atlântico zangado, e foi “ouvir” os pormenores recontados pelo próprio veleiro Avanti, agora de novo ancorado e à espera de outros desafiadores.

“A presente imagem, com efeito, rasga em mil pedaços o manto de desconfiança – escreve a dada altura, e vai aqui como exemplo de umas férias perigosas – em torno do nome do nosso veleiro. É mesmo Avanti e nada tem a ver com o título de um jornal partidário que, aliás, graficamente, é complementado por um ponto de exclamação. Avanti, não é com e mas com i no fim. Palavra italiana, que significa em frente, adiante, avante, futuro vamos… Se lhe acrescentássemos um ponto de exclamação, seria Avanti!, o título de um jornal, não do extinto Partido Comunista Italiano, que se chamava L’Unitá, mas do Partido Socialista. Jornal diário, publicou-se de 1806 a 1993, ano em que o partido desapareceu praticamente da cena política – mas isso são contas de um outro rosário…”.

Bem sei que não dou conta aqui de um veleiro nas ondas, ora de calmas, ora sem aviso pega a dançar e a pular, como que lembrando aos marinheiros mais afoitos, descendentes do Infante, quem mais ordena nas questões de força radical. José Pedro Castanheira tem muito mais para dizer sobre a realidade total arquipelágica do que alguns de nós. Isto para vos dizer do meu fascínio perante os que querem ir um pouco mais além das suas origens em terra firme, ou da sua experiência de vida. O mar sempre esteve em nós, só que em livros de História, ou na memória de tragédias do país que navegou o mundo inteiro, e sem motor.

“Sendo assim, – conclui o autor com outra risada – nada mais lhe resta senão encerrar este modesto Diário, de que guardará um exemplar para memória futura, nem que seja para informação e orgulho dos seus netos, bisnetos e demais descendência. Com a esperança, ainda que ténue, de que possa vir a ser convocado para voltar a este nobre ofício pela mesma marinhagem, em viagem de cariz e objetivos semelhantes”.

Espero que sim, e tenho a certeza que também os graciosenses e, já agora, os florentinos e os corvinos. Quanto a mim, ser-me-ia grato conhecer pessoalmente – mas em terra … – um dos grandes jornalistas da minha geração e do meu país. Prometo não levar o Expresso, que para mim significa o prazer da leitura, e ao autor, não sei, a memória de muito trabalho. Volte, e volte sempre com os seus.

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José Pedro Castanheira, Volta Aos Açores Em Quinze Dias: Diário De Bordo De Uma Viagem Para (Não) Esquecer, Lisboa, Edições Tinta-da-china, 2022. Publicado no “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 30 de Setembro, 2022.

De Philip Roth E Da Construção De Uma Identidade Livre

Entrei num comboio que me levaria até Newark só mesmo a tempo de ver o Sol a nascer no primeiro dia do Ano Novo Judeu. Estava de volta a tempo para ir trabalhar.

Philip Roth, Goodbye, Columbus

Vamberto Freitas

Philip Roth (1933-2018) teve uma das mais longas e polémicas carreira literária no topo da literatura norte-americana contemporânea. Há poucos dias tinha eu sentido saudade de o reler por várias razões, e decidi tirar da estante o seu primeiro grande livro de ficção, Goodbye, Columbus, que contém uma novela e cinco contos. Não era só a comédia hilariante como parte de uma História trágica no pós-II Guerra Mundial, em que o riso imparável sobre as comunidades judaicas nos Estados Unidos, uma emigração que começa em massa a meados do século XIX, tendo continuado até à catástrofe europeia, até então numa existência discreta nos bairros das grandes cidades, com Nova Iorque e arredores no centro nevrálgico da reconstrução de novas vidas e na luta para manter todas as suas tradições religiosas e profanas, com a efervescência intelectual que começa a manifestar-se particularmente nos anos 30, época em que ainda se tornava difícil aos judeus entrar nas melhores universidades daquele país, como docente ou aluno. Só que nem os seus bairros nem os preconceitos do tempo poderiam evitar o que era óbvio: a força histórica e humanista que os judeus sempre cultivaram entre si e perante os outros, e que esperava agora vazar para o resto da cultura desse outro grande país do seu refúgio e descanso de perseguições mundiais bem mais mortíferas e de todo irracionais. Os nomes dos que começam a escrever dentro e fora das academias tornou-se longo de mais para que eu os mencione por este meio: ensaístas, poetas, ficcionistas e dramaturgos. O romancista Philip Roth teve desde o início alguns mentores que já tinham atravessado as fronteiras da segregação e maus olhados. Direi só Saul Below, esse escritor que a partir de Chicago abriria muitas portas. O poder de toda essa escrita ainda causava inveja até a anos não muito longínquos. Gore Vidal, também grande escritor de raízes mais ou menos aristocráticas adentro da então maioria que tudo definia e governava na América anglo-saxónica, chamaria, em linguagem de “denúncia”, todo esse grupo de intervenção magistral, os de ancestralidade judia, e já quase todos nascidos e formados na América, de constituírem uma espécie “quinta coluna” literária, com todo o significado dúbio que essa expressão poderia conter. Problema dele, e dos que nele acreditavam. O que estava a acontecer era o alargamento do chamado cânone, das letras e da sociedade. A ideia de América expandia-se agora e irremediavelmente. A América não era, nem devia ser, uma ideia exclusiva dos filhos e filhas dos primeiros pioneiros, era o que cada grupo nacional ou étnico defendia como sendo a sua América, a visão teria de ser múltipla porque o passado era determinante nos olhares de cada um ou uma que carregava em si toda uma história, e cujos pais e avós haviam emoldurado na experiência vivencial de outras terras, gente e cultura. Philip Roth estava não em conflito, mas sim na determinação de encontrar o seu modo de ser e estar fora do que queriam tanto os judeus como todos os outros. A sua liberdade pessoal e literária só teria uma existência singular e um autor: ele próprio. Ninguém o iria condicionar nos desejos carnais e instintivos, na sua contestação a uma vida institucionalizada pelos costumes ou formação, viesse ela da família, viesse ela seja de quem ou do que fosse. Tudo isso rapidamente se tornaria numa obra literária inigualável. Os seus maiores inimigos viriam de dentro do mundo judaico americano.

Goodbye, Columbus foi publicado em 1959, e recebeu de imediato o prémio superior National Book Award for Fiction. Alguns dos contos e secções de Goodbye Columbus já tinham sido publicadas nos mais prestigiados periódicos, como The New Yorker, e, ironicamente, na revista elitista (no bom sentido) Commentary, ainda hoje existente e dedicada a questões judaicas e internacionais em geral. “ O estilo – diria a conservadora Time na altura da publicação do livro – é ultrajante como a própria vida”. Essa vida carnal, de desejo e “transgressões” associadas, foi uma outra maneira de desafiar a sociedade no seu todo, e a comunidade a que pertencia. Provocou desde o início a formação de comissões judias informais e influentes em Nova Iorque para tentarem “proibir” a publicação dos seus trabalhos, chamando-o um judeu renegado, um demónio que se auto-denegria, uma outra espécie de anti-semita, de raiva contra si próprio, e no processo contra a sua comunidade. Desde as suas primeiras páginas apresentou sempre protagonistas jovens à caça de amores e de camas, para além do mais, tudo perante a raiva dos sectores mais tradicionais e das sinagogas. O olhar e certos gestos de uma rapariga era determinante para a sua personagem-narradora, sempre na primeira pessoa. No início dos anos 70 eu já tinha de ler na minha faculdade californiana o seu terceiro romance cuja sétima edição tinha sido publicada em 1967 – Portnoy’s Complaint/O Complexo de Portnoy, que anda em muitas das nossas livrarias. O riso e o bom ultraje nas fantasias de muita gente fina é imparável, improvável nalguns casos, a arte vira aqui metáfora, uma vez mais, dessa rebeldia em que cada passo é saboreado no silêncio privado de cada leitor. A sua obra é contínua até quase aos seus últimos dias, e passou a ter como protagonista as andanças pelo mundo de Nathan Zukerman, o alter-ego do autor. História e política viriam ainda em romances como The Plot Against America/A Conspiração Contra a América, também traduzido no nosso país, em que ele enfrenta “a tentação totalitária” dentro dos próprios EUA, muito antes dos dias correntes aí e noutras partes. Goodbye, Columbus foi denominado por alguns como sendo uma obra prima.

“Quer seja a dissecar – escreve-se nas primeiras páginas da velha edição de bolso que leio, da então Bantam Books – uma paixão, um encontro amoroso de um jovem, a lealdade dividida de um sargento judeu do exército; quer seja a representação da alienação desesperante de um homem de meia-idade ou dos estranhos voos de um imaginado rapaz novo, Philip Roth demonstra o talento espantoso que faz dele um dos melhores escritores da sua geração – e este, o seu primeiro grande sucesso [Goodbye, Columbus], um clássico do nosso tempo”.

O seu humor e prosa sarcástica estão presentes em toda a sua extensa obra, que termina com o romance Nemesis, de 2010. Entretanto, escreveu sobre, entrevistou e apoiou pessoalmente um grande número de escritores da antiga Europa de Leste sob o domínio soviético. Publicou um outro livro de ensaios e entrevistas, Shop Talk: A Writer and His Colleagues and Their Work. Saia uma vez mais da sua zona de conforto para alimentar a imaginação e sobretudo conviver com outros um pouco por toda a parte, como nunca esquecia os que lhe tinham dado a mão durante toda uma carreira.

Por mera coincidência, enquanto eu relia Goodbye, Columbus, recebi uma edição da New Yorker, com um breve e destacado ensaio de David Remnick, castigando vivamente a Academia Sueca por nunca lhe terem atribuído o Prémio Nobel, e muito especialmente denunciando a cobardia da mesma Academia que até hoje não reconheceu Salman Rushdie, esse mestre das letras que foi há poucos dias vítima de um violento atentado à faca no Estado de Nova Iorque. Remnick junta-o ao mais distinto grupo de escritores: os que nunca receberam esse prémio, e que foram sempre os mais lidos e respeitados em quase todo o mundo. Dá-nos do mesmo modo os que o receberam – raramente reconhecidos pela maioria dos leitores mais assíduos. Diz-nos Remnick que quando alguns amigos de Roth lhe perguntaram o que pensava do Nobel entregue a Bob Dylan em 2016, também judeu, ele respondeu à maneira de um Roth: “espero que para o ano entreguem o prémio a Peter, Paul and Mary”.

Goodbye, Columbus foi traduzido em Portugal pela D. Quixote, LeYa, Goodbye, Columbus E Cinco Contos. Reli, como já disse, uma das edições originais. Quero também essa outra versão portuguesa na minha estante aqui em casa.

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Philip Roth, Goodbye, Columbus E Cinco Contos, Lisboa, D. Quixote, LeYa, 2012. A tradução da epígrafe e as citações sobre a obra de Roth é da minha responsabilidade. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 23 de Setembro, 2022.