Do amor e da loucura

Os livros esquecidos, as autores ignorados são artífices do destino que subsiste debaixo da superfície.

Afonso Cruz, Nem Todas As Baleias Voam

Para a Adelaide, que voa sempre comigo

Vamberto Freitas

Primeiro do que tudo, Nem Todas As Baleias Voam, o mais recente romance de Afonso Cruz, tem pouco ou mesmo nada a ver com um desses adoráveis mamíferos marítimos que faria de Herman Melville o mais canónico de todos os autores americanos canónicos, nem sequer nos fica na memória como símbolo ou metáfora maior deste inusitado romance na nossa língua. A sua audácia temática e as suas linguagens, tão claras como obscuras, como que num poema de um T. S. Eliot menos sisudo, são uma espécie de exercício entre um modernismo literário cada vez mais distante e um pós-modernismo que insiste em combinar a habitual revisitação à História, tanto imaginada como real, por entre a ambiguidade de significações que os quase esquecidos new critics consideravam uma das marcas maiores de qualquer texto que valesse a pena ser lido, meditado, dissecado. Se é verdade que na realidade a CIA tentou as maiores e frequentemente cómicas loucuras para derrotar a ex-União Soviética, o narrador de Afonso Cruz desdobra-se brilhantemente em contador de estórias privadas e arquivista de supostos “documentos” em que o protagonista Erik Gould é recrutado para organizar concertos de jazz no outro lado da Cortina de Ferro durante os anos 70 do século passado, e assim tentar cativar “corações e mentes” (como diziam no tempo escuro do Vietname) para a traição ao comunismo e de seguida adesão ao Ocidente, querendo dizer aos Estados Unidos, a cidade de Deus e do Wall Street. Só que Nem Todas As Baleias Voam é muito mais do que isso. Por detrás da História estão os seres humanos na sua solidão, no seu destino pessoal entre quatro paredes ou passeado numa rua em que mais ninguém conta ou exerce sequer a mínima interferência ou influência nas obsessões ou no coração que quem olha sem ver, de quem sonha sem esperança. Gould, diz o relatório da CIA escrito em secções intermitentes na narrativa, tinha só música dentro de si, e não a queria, magoava-se a si próprio numa tentativa de redenção pelo pecado que era a sua arte, que nele residia e que o oprimia. Arte e amor eram a sua dor. Colocar os dedos num teclado do seu piano para conquistar outros e fazê-los abandonar o seu mundo, sofrer a angústia de não ter a mulher que ama e que o havia deixado, levando-o a uma perseguição obsessiva de um reencontro, como um Ahab atrás da baleia branca que também o havia mutilado para sempre. Ódio e amor, restando todos os outros num palco sem mais enredo ou desfecho. Erik Gould tem um filho de nome Tristam, e que vive em Paris com um casal amigo, também eles reduzidos a encontros ocasionais dentro da mesma casa, a cama mero poiso de descanso ou onde se espera mais morte do que vida. Este é um romance feito de memórias deliceradas, mas em que o humor das palavras e das acções são o contraponto à impossibilidade de vidas com sentido ou da normalidade com alguma felicidade no dia ou na noite. No centro de tudo e todos está a espera do protagonista pela sua amada, Natasha Zimina. Já a meio do romance estamos em 1969, “Quando [Neil] Armstrong – relembra o narrador – pisou a Lua pela primeira vez… A Lua dos amantes nunca mais seria a mesma”.

O que mais impressiona num romance como Nem Todas As Baleias Voam é a quase ausência do sentido ou “espírito do lugar”, dado o momento histórico que que lhe serve de referência e a política da loucura que na realidade nos ameaçava a todos. Estamos, naturalmente, na América, na Europa deste deste lado, e depois na outra então no lado de lá. É impressionante como quase não sentimos, não vivemos, essas geografias já meio lembradas meio esquecidas. Afonso Cruz faz-me repensar o que tinha sido sempre o mais fundamental na arte literária – o lugar era um mero lugar, as personagens, a sua vida interior, os seus lamentos ou as suas lutas pela sobrevivência, pela sua integridade, pelo seu sentimento de culpa ou pela tentativa de salvação é sempre o que mais lembramos de uma significante peça literária. Nunca será a tentativa de uns serviços secretos sem nome nem identidade definida que retemos destas suas páginas. Muito menos será a luta entre um bloco ideológico ou militar e outro que o leitor vai registar na memória numa leitura deste romance. Vão ser as poucas as figuras (re)inventadas e os seus dizeres e desejos que ficarão connosco, a dor da perda, o desespero do nada num mundo em que adivinhamos em ebulição, a música como refúgio, a arte em geral como a obra maior da nossa própria humanidade. O registo histórico destas páginas, incluindo o que poderá ser parte dos arquivos reais de um tempo e fúria, servem apenas como como referência secundária e, de certo modo, palco esclarecedor de certas motivações de cada um, um tempo que provocou ou não decisões e comportamentos, um tempo que tinha outras e bem diferentes modos de ser e estar. A História é uma abstração para cada um de nós. As nossas vidas quotidianas, os nossos desejos, os nossos sonhos são quase sempre demasiado íntimos. Por entre as chamadas massas e as vozes dominantes, permanece a nossa alma, a nossa vontade de uma normalidade feita à nossa medida e na companhia de quem amamos, ou são os nossos mais íntimos outros. Erik Gould tem a falta da sua mulher amada, o seu filho não tem nem presente nem passado, guarda numa caixa de sapatos objectos banais, o que mais o vai definir após a morte, o casal amigo com quem vive, Tsilia e Isaac Dresner tenta redescobrir o amor e o desejo. Dresner tem uma livraria que se chama Humilhados & Ofendidos. Pois. Fiódor Dostoievski, ou o chamamento à nossa humanidade, em todas as geografias de afectos e memórias, de loucura, raiva e solidão.

O Escritor – escreve o narrador sobre ele próprio, ou sobre um outro ser imaginário – dizia que não era ele quem escrevia, que não era ele o autor, que era um escravo da inspiração, que a sua mão se mexia comandada por uma força estranha à sua vontade, que aquelas histórias não lhe pertenciam. Era um processo extremamente doloroso, em que ele servia de veículo. Muitos escritores sentem exactamente a mesma coisa e garantem que a inspiração lhes escorre pelos braços, pelo corpo, pela cabeça, num processo mágico em que a escrita parece contornar a consciência para ser algo que sai dos dedos, como a tinta sai das pontas das canetas. E tudo isto é acompanhado de uma dor imensa, como um parto, com sangue e com suor. Com o Escritor, era exactamente isso que se passava. Era literalmente isso que se passava”.

Desde há alguns bons anos, e nas mais variadas línguas, que que se fala na “morte do romance”. No nosso país, Vergílio Ferreira também fez questão de o afirmar por mais de uma vez. Nunca entendi bem de onde vem esta ideia, de onde vem a ideia que a arte literária acaba com uma qualquer geração. Não queria ser injusto aqui, mas creio que certos autores de renome nos seus países, ao chegar a certa idade ou exaustão, ou, mais problemático ainda, para ser delicado aqui, achavam-se os últimos mestres da forma e do conteúdo. Pior ainda, um Francis Fukuyama afirmava no seu famoso O Fim da História E O Último Homem que tínhamos chegado ao fim da caminhada político-ideológica, o liberalismo sócio-económico tinha-se tornado o futuro, a universalidade da vontade humana atingia o seu auge, a sua meta final. As fantasias académicas também são frequentes, e conseguem por algum tempo impor-se. Nem a história chegou ao fim, nunca, nem arte deixará, nunca, de transfigurar a condição humana. Em todas as línguas e culturas a literatura parece estar cada vez mais viva. Em Portugal, há uma nova geração de escritores que nada devem a ninguém. Sabem dos seus antecessores nacionais, e sabem dos outros. Sabem agora que há mais mundo para além do seu. Sabem que a sua língua pode e deve dizer do mundo sem fronteiras e preferivelmente sem preconceitos de qualquer espécie. Viram o dito de Fernando Pessoa ao contrário: Sou de toda a parte, como sou daqui. Já falei de alguns deles que publicaram em tempos muito recentes. Lembro agora também Afonso Cruz. O resto da sua obra, na literatura, nas artes plásticas, filmes de animação, músico e cineasta completam a sua visão do tempo que é o nosso, da condição humana em sociedades globalizadas enquanto reafirmam a sua individualidade, a sua diferença no mosaico humano que, apesar de certa retórica política do momento, a grande arte literária representa nas mais variadas línguas e tradições.

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Afonso Cruz, Nem Todas As Baleias Voam, Lisboa, Companhia das Letras/Penguin Random House, 2016.

Quando lemos quem amamos

E o dia acordava radioso; gotas suspensas, como rosário de contas, compunham um rendilhado incerto entre as folhas da madrugada.

Adelaide Freitas, Sorriso Por Dentro Da Noite

Vamberto Freitas

Não será nunca só a indizível saudade que me faz reler a mulher que amo, não será só querer recordar a sua viva voz nos dias que foram os nossos. Da sua silenciosa existência, agora sei eu, acompanha-a todos os dias, e nem sempre o choro me faz abraça-la e dizer-lhe boa noite, olho-a como quem olha para o luar no lado de fora da nossa janela, mas vendo a sua cara, a sua alma a flutuar perto e longe de mim. Fecho-me numa outra sala, e reabro os seus livros, fixo-me por longos instantes nas suas palavras, e todo um mundo renasce em mim. Sou agora a sua memória, mas a sua prosa e poesia continuam a ser uma parte indelével da minha vida. Não é pouco, é todo um universo a que pertenço, esse que foi nosso e só nosso, que me deixou sem nunca nada me pedir, que me dá e dará sempre sentido a eu ter sido alguém a quem foi permitido estar junto dela, a luz a colorir a nossa casa e a noite a calar fundo as palavras inúteis, fazendo do seu toque e olhar tudo o que significava vida vivida e o desejo de um outro amanhã.

Não, não se foi, nunca partiu, apenas adiou um nosso reencontro num infinito sem dor, o que numas das suas poesias chamou Viagem ao Centro do Mundo. Adormece agora sem mais se recordar desses momentos ou das palavras, ditas e escritas não para qualquer glória futura, só para que permanecesse o “instante suspenso”, como diria de si próprio um outro amigo nosso nas suas horas de inquietude e desejo. Já não chora nem sei se sonha, olha apenas o invisível, o Nada que é o seu mundo sem princípio nem fim, não sei se me conhece ou se me lembra alguma vez, do beijo que dou fico só com o sabor da sua cara e os seus olhos sem expressão. Está aí, e nela me vejo, sei e saberei sempre quem é. Sei que sou a sua memória. As palavras que me deixou escritas são o seu ser inteiro e intacto. Derrama em mim não só a mulher que é, entrega-me a única razão de estarmos aqui, entrega-me o mundo que só alguns tiveram e têm a felicidade de conhecer e de viver. É muito, quer seja o espaço todo na sua escuridão misteriosa ou na sua luminosidade celeste. Tudo o resto nada diz, nada significa, ninguém nos salva ou nos condena. A sua escrita não são meras palavras para mim. São todo o seu ser na beleza que de quando em quando vivemos num passado que se afasta cada vez mais. Esqueçamos o resto. Já não me conhece, como me parece algumas vezes? Conheço-a eu, e um beijo meigo, a minha voz entrando no seu quarto, ainda lhe faz sorrir e tentar olhar-me. Que mais poderia desejar um homem?

Quando releio o seu Viagem ao Centro do Mundo, publicado em 1994, revisito com ela não só o seu mais profundo ser, o seu interior em estado de felicidade e saudade, como revejo todas as geografias dos seus grandes afectos, das suas saudades, das suas perdas, da sua infância, e sobretudo da mulher em busca de si própria. Não, não me entristece, faz-me caminhar a seu lado, faz-me admirar ainda mais uma vida feita de partidas e chegadas, relembra-me dos seus mais íntimos desejos, dos seus mais sentidos desgostos e amores. Ela e a natureza estiveram sempre em comunhão sagrada, cada pedaço da terra de Deus o seu porto seguro, cada memória dos seus em longínquas paragens americanas, mais do que uma presença, faziam-na reviver um tempo que havia sido, mas nunca por mim esquecido. Entrava nas suas aulas para transmitir não apenas o saber dos livros, mas também a sua pessoa como ser vivo e personagem. A literatura não eram só palavras, era vida, era história, era arte, era empatia por quem a ouvia e com ela aprendia. Entrou na política com a convicção de que o mundo também era de todos, e todos o deveriam reconstruir, um pobre não era um pobre, era um homem ou uma mulher em busca da dignidade e da vivência a que tinha direito. O poder era para ser combatido ou utilizado no bem comum, não admirado e muito menos bajulado. Tinha os seus maus momentos e raiva momentânea? Entrava numa igreja, só, e meditava.

Eu quero viver desesperadamente

Pôr emoções em movimento

Marcar rituais idos e por vir

Festejar o entusiasmo e a alegria.

Quero subir escadas, partir perna

Vogar no mar, livre e etérea.

Quero o palpitar do coração

No rosto uma flor em cada festa.

Quero cair, levantar, sair,

Ao estático nunca pertencer

Gargalhada quero em eco vibrante

Ressoar mundos dentro de mim.

Quero o choro em catadupa volante

Seguido de um sorriso de marfim

Quero o gesto do tacto desenhado

em doação e entrega sem fim.

Alguns anos depois viria a injusta sentença, mas antes de resumir toda a sua sorte de vida no quase profético e mais ou menos autobiográfico romance Sorriso Por Dentro Da Noite debruçava-se sobre toda uma vida açoriana e americana transfiguradas, outra metáfora da história do povo açoriano no seu destino de andarilho, e de rejeição à miséria, à injustiça, à prepotência medíocre de terra-tenentes e comunidades sujeitas às maiores indignidades e isolamento. Como em quase toda a literatura da nossa geração, eram só os navios vistos à distância em mares bravos e rumo à América que significavam e metaforizavam a nossa salvação. A sua autora muitos anos antes insistiria em regressar aos seus Açores, e aqui desafiar essa história e esse destino que agora prometiam uma outra maneira de viver a terra que é a nossa. Na sua outra poesia De Emigração Tecido havia de dizer da dor de uma “exilada” numa Nova Iorque que tudo prometia, mas a um preço, por vezes, quase desumano. Cada um de nós viveu e vive a sua própria sorte. Quando nos conhecemos, essa poesia mexeu comigo de modo muito especial, e ela não a publicava. Ser professora de literatura numa universidade portuguesa trazia certos constrangimentos (que hoje, parece, já não existem), era a inveja de uns e certa petulância de outros. Entretanto, haveria eu de a convencer a tirá-la da gaveta, numa carta enviada ainda Califórnia, e que agora está na sua contracapa.

Li De Emigração Tecido – escrevi então – e felicito-me por uma poesia do tempo perdido e apreendido, esse inescapável tema da nossa existência e arte atlânticas, esse quebrar o isolamento físico e psíquico, para uma vez mais tão brilhantemente agarrar de novo a vida. Estarei muito fora da tua escrita poética quando aí vejo a dor como passo fundamental para uma renascença e contínua aventura que é a vida de cada um e de todos nós? Quando nessa tua linguagem límpida e não-sentimental negas o niilismo que a muitos está corroendo nos confusos dias (como diria o falecido James Baldwin) de indizível caos da colectividade? Vejo ainda nas tuas comovidas páginas De Emigração Tecido uma tremenda luta entre o indivíduo que insiste em sobreviver bem vivo e uma Natureza que, no meio desse mar, conspira perpetuamente para amordaçar o Homem, ora aterrorizando-o, ora oferecendo-lhe miragens da sua indescritível beleza. É um triunfo absoluto da Vida e da Beleza; uma ode linda à força humana, ao seu optimismo, determinação e vontade de viver”.

Por agora, não lhe queria dizer mais nada. Tenho aqui à minha frente todos os seus outros livros, e aberto, uma vez mais, O Sorriso Por Dentro Da Noite.

Oh, vovó, Quem me dera, quem me dera – escreve Adelaide – ser pequenina, feita de nada; regressar aos tabiques da parede, esconder-me como quando era criança, voltar ao velho quintal, respirar o aroma de cada flor, sorver o rosa-lilás do pessegueiro, e saborear o araçá da cor do girassol, Eu quero é desaparecer daqui, vovó”.

Tenho, repito, todos os seus livros em minha frente, para além dos inúmeros escritos espalhados pelas mais diversas revistas universitárias e literárias. Está no seu descanso no quarto ao lado – e eu na minha turbulência de saudade, respeito, homenagem e gratidão.

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Adelaide Freitas, Sorriso Por Dentro Da Noite, Braga, Editora Ausência, 2004. Publicado a minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 24 de Março, 2017.

O Mundo e a ilha

David estava a chegar a Ponta Delgada, a principal cidade da mais populosa ilha dos Açores. Visitara vários locais no mundo, mas era o vislumbre daquela pacata urbe que o preenchia com um calor apenas transmitido por um lar.

Hélder Medeiros, A Balada do Ouro Nazi

Vamberto Freitas

Ao ler o novo romance de Hélder Medeiros, A Balada Do Ouro Nazi, Vencedor do Prémio Literário Letras em Movimento 2016, nunca tinha sentido Ponta Delgada, a vivência açoriana mais ou menos pós-moderna, como a sinto e a revejo nesta prosa. Há muito de genial nesta sua representação da vida actual, aqui e noutras partes. Tenho de dizer duas coisas sem quaisquer reticências ou qualificações: que entre os escritores de romances policiais em língua portuguesa dou preferência ao brasileiro Rubem Fonseca e, desde alguns anos, a este açoriano. Hélder nasceu aqui ao lado na freguesia de S. Roque, o lugar que adoptei para viver há mais de um quarto de século. Refiro estas circunstâncias pessoais sem grande importância para que, simplesmente, na ansiedade de grandeza que parece definir alguns ilhéus, não deixarmos de olhar para a nossa própria rua, e relembrar que lei ou história nenhuma diz que o que está para além do horizonte é que deve ser sempre bom, ou até “legítimo”. A arte literária aconteceu sempre nas mais variadas geografias, por vezes em cercos continentais muito mais isolados do que um pedaço de terra rodeada de mar por os todos. Parafraseando Pedro da Silveira, a quem roubei o título de um dos seus grandes livros de poesia para o inverter intencionalmente neste meu texto, na literatura soubemos sempre dar conta de nós, e não vou repetir mais nada sobre o cansativo tema, como também diria José Martins Garcia, que de quando em quando é trazido à baila. Não. Hélder Medeiros pertence a uma nova geração de escritores portugueses espalhados pelo continente, ilhas e até na diáspora que estão a mudar inevitável e irremediavelmente os nossos imaginários do arquipélago. A residir aqui nas ilhas, só para falar dos que mais atenção têm recebido nestes últimos anos, estão João Pedro Porto, Joel Neto e Nuno Costa Santos, que anda sempre entre o Livramento, também aqui ao lado da minha casa, e Lisboa.

A Balada do Ouro Nazi, estou em crer, confirma esse seu estatuto, e algo mais, ao lado dos melhores que entre nós estão a dar um novo fôlego à nossa literatura, ou pelo menos a levá-la para todos os lados, a quebrar o pequeno referencial que havia servido de imagens e metáforas a muita escrita nossa do passado. Para ele, como para os seus colegas, o mundo inteiro não passa de uma série de ilhas, às quais eles pertencem e vivem em directo ou à distância, sem ter de anunciar ou falar sequer do “universalismo” que tanto obceca alguns leitores e críticos portugueses, como se não soubéssemos que o coração ou a condição humana difere só no seu grau de bem-estar ou sofrimento, ou que os nossos medos e ansiedades são partilhadas por todos os outros. As ilhas em todos os oceanos têm estado sempre na melhor literatura ocidental, numa continuidade temática e estética que Édouard Glissant chamaria de “poética da relação”. Recebem os mais inesperados visitantes, e absorvem na sua cultura um pouco de todos, o seu olhar para além do horizonte um misto de saber e curiosidade, filhos e filhas saudavelmente híbridas que lhes vem desse pluralismo de relacionamentos. Só que os nossos imaginários passaram, uma vez mais, dos reflexos de ilhas pobres e que alguns supunham isoladas para os de convivência diária de línguas e tradições sem fronteiras. Se continuamos a olhar, como sempre o fizemos na nossa historicidade, para o exterior como espaços da nossa salvação em tempos de crise generalizada, a verdade é que a passagem para a esse quotidiano inclui os que já não são os “outros”, estejam eles fisicamente na ilha, ou a milhares de quilómetros. A ilha é, mais do que nunca, o mundo. Tudo o que tínhamos assumido no passado caiu com a globalização, no bom e mau sentido. O romantismo com que alguns viam o suposto isolamento dos ilhéus já não pode ser o eixo axiológico do nosso pensamento, e muito menos da nossa literatura. Fernando Aires falava-nos “numa cidade cercada”. Hélder Medeiros reinventa a Ponta Delgada dos nossos dias como sendo a cidade solitária, sentida e reconhecida imagisticamente pelo leitor que a conhece, e ainda mais, talvez, por quem não a conhece. Dentro dela, coexistem todos os personagens de qualquer outra urbe maior ou menor – os oportunistas bem formados ou encartados, a presunção de uma elite nativa que já não existe, o poeta regressado às origens mas incapaz de fugir do seu labirinto interior, um ex-polícia desiludido mas sempre atento ao seu meio, pequenos e grandes criminosos nados e criados na ilha ou de outras nacionalidades, a mulher raivosa e a amante generosa, a violência que cada um destes personagens auto-inflige a si próprio, ou então, como na trama deste belo romance, lhes é infligida por outros até à morte mais banal ou a assassínio mais requintado. Achei de grande astúcia o facto de uma série de eventos imaginados, mas de todo plausíveis, que abalam Ponta Delgada nos nossos dias, a palavra “repratriado” aparece uma só vez, e mesmo assim só para o descartar como um dos responsáveis pela violência em curso, como que num deliberado e civilizado combate a estereótipos que classificam à priori este e outros grupos, aqui e em toda a parte. Se nas nossas páginas mais antigas era o barco que partia com os nossos pobres e inconformados, é agora o inverso – o navio caminha para cá, mas nem sempre traz tudo de bom. Só que são outros de cá que colaboram, os seus motivos vindos de fraquezas pessoais e desde logo reconhecíveis pelos mais letrados, ou os que optaram por viver e enriquecer fora do sistema e da sociedade a que pertencem. O autor consegue a proeza de piscar o olho, ora com seriedade ora num riso de quem sabe que o “passado nunca morre” mas tudo se modificou ou evoluiu na nossa sociedade, o que tínhamos sob o conceito de açorianidade permanece mas crescentemente só por entre sombras ominosas nas calçadas das nossas cidade, e até nos campos da nossa ruralidade, toda a bagagem boa e má das últimas décadas aqui também descarregada.

Por certo que não vou estampar aqui qualquer pormenor deste romance, só insinuar os seus contextos e estilo muito próprio. A caminho da América vai um carregamento ilícito de ouro nazi pertencente a um aristocrata inglês que simpatizara com o regime hitleriano e o seu projecto. Isso antes de ser desviado a meio atlântico para Ponta Delgada o navio de nome Hepatica por um bando criminoso denominado Os Fantasmas de Paris, e depois em São Miguel O Carniceiro do Bosque das Crianças. A corrupção e a infiltração criminosa são generalizadas, desde o Banco de Portugal às polícias nacionais e locais. Andam todos à procura do dinheiro e do prestígio social dominante, aqui metaforizado numa secreta Ordem do Arcanjo, que vai buscar as suas fantasias ao jesuíta açoriano dos séculos XVI e XVII, Bento de Góis. Intermitentemente, o narrador vai comentando a História, e crê que o ouro nazi nada tem a ver com nacionalidade ou regime de qualquer espécie – tem tudo a ver com o poder universal do metal brilhante, que para nós a Ocidente vem de tempos imemoriais até ao Velho Testamento, a mensagem do castigo dando sempre lugar à fantasia da luxúria. Em Ponta Delgada juntam-se indivíduos açorianos e de outras nacionalidades, principalmente franceses, italianos e suecos para levar a cabo o grande roubo de ouro que havia sido roubado a outros, preparado para tudo que garantisse o seu sucesso, o sonho de se tornarem multi-bilionários, termo que entrou ultimamente em quase todas as nossas conversas políticas. Tal como no caso do “repatriado” sem nome, a nacionalidade de cada um reduz-se a um mero detalhe sem qualquer importância. Há momentos aqui de humor hilariante, como aliás seria de esperar de um autor como Hélder Medeiros. Um deles, para mim, é o poeta regressado de Lisboa à ilha e metido num gabinete bancário a olhar para folhas de excel que nada lhe dizem, e que vira cúmplice e assassino do bando, culpando todos e todos em seu redor pelo seu falhanço literário em ser reconhecido cá dentro ou lá fora.

Tinha de contextualizar em vários espaços e tradições A Balada do Ouro Nazi. Os pormenores e o prazer do texto só poderão ser retirados da suas páginas. Juntamente com os seus dois primeiros romances, Solução Primária e Elemento Alpha: A Origem, Hélder Medeiros está a cavar fundo o seu e nosso viveiro literário. Criador de personagens inesquecíveis, regressam quase todos eles do mundo para casa – mas nunca se livram dele.

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Hélder Medeiros, A Balada do Ouro Nazi, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2017.

Uma outra América e as suas outras raparigas

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Disse que o sítio para onde íamos tinha a ver com um modo de vida. Russell estava a ensiná-las a descobrir um caminho para a verdade…

Emma Cline, As Raparigas

Vamberto Freitas

Estamos em Julho de 1969, um pouco a norte de São Francisco e da revolução psicadélica e política em curso no bairro Haight-Ashbury, e um pouco mais a norte na famosa e única lembrança digna e duradoura ainda existente, a City Lights Bookstore, do poeta beat Lawrence Ferlingheti, esse que conjuntamente com a outra figura icónica da época social e cultural mais tremida da América, Allen Ginsberg, terão sido dos primeiros escritores daqueles lados a conhecerem e a reagirem à obra maior de Fernando Pessoa. Menciono estes factos relacionados com o romance aqui em foco, As Raparigas, de Emma Cline, para que me permitam uma breve intrusão de quem nunca teve nada a ver nem com aquelas geografias, com a filosofia de vida que dominava aquelas ruas, e muito menos ainda com a imaginária estética geral daqueles tempos.

Eu tinha emigrado para os EUA com toda a minha família aos 13 anos de idade, em 1964, e no tempo ficcional desta ficção creio ter sido o ano em que entrei numa pequena faculdade muito mais a sul, a alguma distância de Los Angeles, e vivia numa cidade chamada Chino, cuja única fama maior era sua grande prisão nos campos também rodeados de vacarias maioritariamente de imigrantes e luso-descendentes, e onde o meu pai trabalhava como um escravo. Eu via, ouvia e lia o que ia à minha volta, e fugia de tudo e de todos, um rapaz açoriano inseguro do seu lugar numa nova e estranha sociedade, mas convicto que o futuro residia nas páginas dos livros e na carreira convencional que então sonhava ser a minha um dia. Podia ouvir e admirar os Doors, com o seu estrondoso sucesso Light my fire, podia até delirar com Purple Haze, de Jimmy Hendrix (excuse me while I kiss the sky), podia ainda saber que o White Rabbit dos Jefferson Airplane (também mencionado neste romance) tinha tudo a ver com os trips da heroína ou do ácido em voga, mas eu tinha optado pelo conhecimento à distância, mesmo que em festas bem mais amenas era impossível evitar o cheiro da erva constantemente fumada, com uma lata de cerveja na outra mão.

Recordo-me do que, anos mais tarde, já numa fase de estudos pós-graduados e como professor numa boa escola secundária me diria um antigo colega: chegámos aqui mais ou menos saudáveis, não fritamos o nosso cérebro, e nunca vimos o interior de uma cadeia por razões de malfeitoria a outros. Éramos sem dúvida o outro lado da revolução: os filhos de uma classe média baixa ou remediada a aproveitar o que o Sistema nos oferecia, mas sem nunca deixarmos que uma consciência política à esquerda deixasse de nos guiar em certos valores existenciais, na visão de uma sociedade sem guerra nem fome, com mais igualdade e menos materialismo acéfalo. Los Angeles representava isso mesmo para nós nesse outro lado da barricada. Alguns sábados à noite visitávamos a Sunset ou a Hollywood Boulevard para apreciarmos as alegres andanças de uns que pregavam a paz e o amor livre, topando outros em assustadoras comas químicas nos passeios da cidade, a mesma mítica Hollywood que passava para o resto do mundo uma imagem bem diferente: ruas limpas e ladeadas de grandes casas, as palmeiras a abanar romanticamente ao vento, o suposto glamour do cinema e teatros adjuntos. Sim, sabia e conhecia essa América, mas nada com ela queria. De cabelo cortado, calças limpas e sapatos engraxados, nós é que então deveríamos parecer os freaks quadrados de uma sociedade a arder.

As Raparigas informa os seus leitores que se trata de um primeiro romance, mas não deixemos que isso influencie a leitura de cada uma das suas páginas, da sua prosa estilística algures entre memórias reinventadas e poesia pura. A sua autora é uma jovem nascida em 1989, mas já traz no currículo literário algum trabalho na The New Yorker e outra ficção publicada em revistas tão prestigiadas e exigentes como The Paris Review ou Tin House. O romance tem como referência primeira o caso de Charles Manson e as mulheres jovens que com ele viviam nas mais degradantes condições algures no norte da Califórnia, num rancho abandonado e fora de vista. A sua narradora chama-se Evie Boyd, e foi uma das sobreviventes daquela noite em Julho, em que duas famílias foram barbaramente assassinadas à faca, a sangue frio e sem qualquer remorso até aos dias de hoje, mesmo que seja referido que Suzanne, aqui o seu nome ficticio, se tenha convertido e praticado uma religiosidade cristã. O que mais deverá interessar os seus leitores, para além da prosa brilhante de Emma Cline, é uma outra originalidade adentro da tradição literária americana. A narrativa parte do presente, quando Evie já está só e vive por alguns dias na casa de um amigo juntamente com o filho e namorada desse amigo, e relembra os seus dias de fascínio, aproximação e eventual convivência com o grupo do rancho, absolutamente apaixonada por Suzanne, a que viria, numa viragem singular dos acontecimentos, a impedir que a sua admiradora participasse na carnificina de Los Angeles. Por certo que já é a mulher muito mais velha a relembrar o que então sentia aos catorze anos de idade, mas força-nos a mergulhar na nossa própria consciência e memórias, o que torna toda a estória pessoal da narradora ainda mais plausível, acreditável, a normalidade dentro da anormalidade que são os dias de qualquer adolescente numa sociedade que então encenava as mais radicais mudanças de vida interna enquanto prosseguia com a dilacerante guerra no Vietname, e perpetuava a luta ideológica entre dois blocos mundiais cujas armas poderiam obliterar para sempre boa parte da humanidade. A falsa revolta das seitas, como a de Charles Manson (de nome Russell nesta ficção) que  proliferavam na Califórnia como ervas daninhas num jardim vergado à tempestade que então parecia apocalítica, como na poesia cantada de Jim Morrison, tinha a morte como culto, a violência como vingança contra uma sociedade que exigia de cada um de nós, acima de tudo, serenidade e a força interior que permitia aos nossos pais lutar dia e noite pela vida, e a nós a persistência livresca ou intelectual para a felicidade pessoal e para o contributo possível a um novo e mais tranquilizante modo de vida, o sentido de pertença aos que escreviam e liam os livros para algo mais do que o prazer egoísta da solidão na companhia de meros personagens ou na espreita de vidas e geografias imaginárias. As Raparigas é isso, e muito mais. Creio tratar-se de um romance que ficará como um clássico de época, permitindo-nos mergulhar não só no seu momento histórico, mas sobretudo, uma vez mais, na consciência de adolescentes e dos seus “mentores” nos anos loucos e de vidas à deriva.

“Ele tinha querido – diz a narradora a dada altura, numa reavaliação do seu relacionamento com o próprio pai, a memória reavivada daqueles dias e da maneira de estar na vida de uma adolescente rebelde – alguma coisa. Como queria Suzanne. Ou a minha mãe queria Frank. Queríamos coisas e não podíamos fazer nada contra isso, porque havia a nossa vida, que tinham-nos apenas a nós mesmos, e como poderíamos alguma vez convencer-nos de que aquilo que queríamos estava errado?”.

Há qualquer coisa no tom destas linguagens, contextualizações ligadas à arte daqueles momentos e subtis chamamentos históricos que tornam a prosa de As Raparigas numa das poucas obras literárias norte-americanas da actualidade como uma peça inclinada a um regresso ao existencialismo de Jean Paul Sartre dos anos de radicalidade política e busca por uma saída tanto ideológica como pessoal. A redefinição consciente de valores que permitissem a cada indivíduo decidir o seu próprio destino, e ainda mais a sua pertença a um mundo maior no processo de rejeição total de todo um passado e na reinvenção de outro. A prosa de Emma Cline faz-me ainda relembrar as consequências da violência de O Homem Unidimensional, do alemão Herbert Marcuse, que leccionava e escrevia ali bem perto na mesma Califórnia aqui representada. Isto não é só um romance. É um testemunho entre a realidade e a ficção dos tempos que abalaram o mundo, e nos fizeram o que somos hoje, mesmo perante as claras ameaças de um regresso brutal a sociedades que nos pareciam ter aprendido com a história e a literatura que são indeléveis na nossa memória magoada.

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Emma Cline, As Raparigas (tradução de José Vieira de Lima), Lisboa, Porto Editora, 2016.