Viagens interiores de uma açoriana

capa AndarIlhas

Ao contrário da Leonor camoniana, não vou à fonte, mas sim à torre de marfim; caminho formosa e segura, com a certeza de que a minha pele deixa escapar um leve perfume de ilha e mar, o cheiro da minha avó, um pedacinho de uma história construída no feminino, a minha história.

Maria João Dodman, AndarIlha

Vamberto Freitas

Há algum tempo que não lia, de uma autora açoriana residente ou fora do arquipélago, uma escrita tão bela e assertiva, que de uma penada maravilhosa define a sua pessoa e uma história de mulher entre-mundos nos dois lados do Atlântico, ciente e consciente da sua sorte pessoal numa diáspora lusófona cada vez menos dispersa ou longínqua, cada pedaço de prosa sobressaindo aqui como uma alegoria do processo de reinvenção contínua do seu ser e modo de estar na vida. Maria João Dodman, doutorada em literatura ibérica pela Universidade de Toronto, Professora Associada da York University desde 2008 e pertencente ao Canadian Center for Azorean Research and Studies, micaelense criada e educada desde cedo no Faial, e depois imigrada naquele país norte-americano a partir de 1989, não será só mais uma andarilha açoriana em busca de um outro mundo e vida, mas sim uma participante vivíssima nessa experiência flutuante por cima de mares e terras, que é a vida de todo o imigrante em qualquer parte, mas acima de tudo revela-se ao seu público leitor como uma das mais agudas observadoras desses mundos-outros, e que resulta agora nesta pequena mas magnífica colectânea de breves textos, AndarIlha: Viagens De Um Hífen. A vida intelectual lusa tanto nos EUA como no Canadá não tem par em qualquer outro país dos nossos antigos ou modernos destinos, e isso inclui mesmo o Brasil. Falo das primeiras gerações que desde meados do século passado saíram em grandes números, e falo enfaticamente das primeiras gerações açorianas que se formaram e integram hoje algumas das mais prestigiadas instituições do ensino superior naqueles dois países. Poderão ser poucos em números proporcionais ou quando comparados com outros grupos nacionais, mas a verdade é que quase todos eles e elas têm sabido equilibrar o seu lugar nas torres de marfim, de que nos fala Maria João Dodman nestes seus textos, com a intervenção pública constante, e ainda mais através de obras literárias que um dia, à maneira que se vai desfazendo em Portugal os preconceitos habituais ante os nossos supostos estrangeirados, farão parte de um rico e consequente cânone literário e cultural, inevitavelmente transfronteiriço por força da nossa história arquipelágica e nacional, por força da globalização cultural em curso. Aliás, quanto à literatura referente aos Açores já não é sequer concebível qualquer leitura englobante ou estudo sem os incluir, quer escrevam na língua portuguesa ou inglesa. A nossa imigração massiva para o Canadá data dos anos 50, mas depressa os nossos escritores lá residentes começaram a dar conta de si, da sua vida nas, ou à margem das nossas comunidades. Com este livro, a autora coloca-se num distinto rol de prosadores, como Irene Marques, Eduardo Bettencourt Pinto e Paulo da Costa, e em língua inglesa os luso-descendentes Erika de Vasconcelos e Anthony De Sá. Note-se que não menciono aqui géneros ou quantidade de publicações, refiro-me antes ao impulso temático e referências binacionais desta escrita, na firme convicção de que esta pequena jóia literária que tenho entre mãos é um prenúncio ou tão-só um primeiro exemplar do que a autora nos dará no futuro. Não a imagino a ficar por aqui, tanto neste género literário como ainda mais em prováveis narrativas de fôlego. O falecido poeta Urbino de San-Payo disse-me um dia na Califórnia que a nossa vida era, pensada e dita metaforicamente, como que estarmos a meio de uma ponte, sem nunca avistarmos os dois extremos. Poderá ter sido assim noutra época, mas o que nos diz Maria João Dodman é que essa mesma ponte é para ser percorrida em duas direcções, e só assim se completa o destino de um povo que dos seus guetos metropolitanos em terras distantes reconstrói mundos sincréticos e inteiros, vivendo quotidianamente a universalidade que entre nós parece ser apenas um conceito intelectual, constantemente invocado por bem-pensantes.

Noto que resisto à designação de “crónica” para esta escrita de AndarIlha: Viagens De Um Hífen. A brevidade destes textos não nos deve impedir de ler neles o que, frase a frase, linha a linha tem a voz inconfundível com que um escritor ou escritora se dirige ao leitor – contêm pensamento ensaístico com chamamentos à experiência pessoal num contexto mais vasto de história relembrada ou insinuada, o pessoalismo da autora em dialéctica constante com as duas culturas e línguas em que está inserida, a memória dos dias de bruma ou escuridão açoriana que escondiam um passado de rigor tradicional e opressivo, particularmente para as mulheres enquanto os homens se dissipavam no álcool e na ausência do sonho, essa ruralidade das ilhas em confronto com, ou dando lugar à libertação de novos mundos. Lembro-me de quando eu, já a meio dos meus estudos numa faculdade californiana, olhava para o meu antigo Bilhete de Identidade, e achar-me um “estranho” naquele passado, sem ter naquela precisa altura deixado de também sentir-me um estranho em terra estranha, os meus dias uma reinvenção constante de mim próprio na procura determinada de um lugar no futuro e de uma razão de vida. Era na cozinha da minha mãe ou da minha irmã onde eu voltava esporadicamente ao cheiro da açorianidade, às linguagens das minhas origens. A noção – como há anos escrevi noutra parte – de “pátria” para mim era já só quase teórica, e não previa qualquer regresso, real ou sequer sentimental, aos dias de conforto na minha freguesia de nascimento. Tudo isto para dizer que entendo perfeitamente quando Maria João Dodman se redescobre ou reconhece de novo como mulher açoriana na obra de Dias de Melo, começando por Pedras Negras, cujo referencial geográfico e humano envolve idas e vindas dos Açores à América. “A cidade de Toronto – escreve a autora em “José Dias de Melo: Saudades Dele, Pena de Nós” – e aquela biblioteca desapareceram e eu estava lá com o Francisco e a Maria, numa experiência que ainda hoje afirmo que consegui cheirar o mar e a terra dos Açores”. Eis o poder quase místico da literatura, eis o poder das suas sombras que espelham o nosso ser no negrume do esquecimento, e nos avisam que sem o passado nada somos, nada poderemos ser nunca. No seu cosmopolitismo novo-mundista, a autora parte do resgate desse seu ser, dessa sua ancestralidade de portuguesa atlântica não só para se reafirmar entre os seus concidadãos do país em que lançou novas raízes, como ainda para para a descoberta do resto do nosso país e do vasto mundo lusófono. Numa viagem ao Brasil sulista de Santa Catarina ela experimenta o melvilleno choque de reconhecimento perante os que em sua frente lhe falam da mítica açoriana das suas origens. A nossa literatura, diga-se ainda, é o nosso mais duradouro testemunho de como estamos verdadeiramente em casa no mundo, ou como o nosso inevitável regresso se torna a luz que nos faltava antes da partida, o que era cerco sufocante é depois o ponto primeiro da nossa outra saudade.

Saltam-me as lágrimas – escreve num texto sobre uma “saudade” doentia por um arquipélago outrora de miséria e escuridão, num encontro com certa audiência numa Casa dos Açores – aos olhos. Exijo que a saudade chorosa seja por eles, pelos esquecidos. Quanto ao resto, paremos com as vitimizações. Deixemo-nos de sagas migratórias, que, conscientes ou não, levam consigo a ilharias, de baladas melancólicas, tristes, nutridas por uma saudade afligida. Passemos a celebrar a nossa modernidade, a nossa hibridez em que a saudade se transforma de acordo com as circunstâncias. Nem sempre a saudade chora. Por vezes, pondera, aprecia, celebra. Pondera o nosso espírito empreendedor, corajoso. Aprecia a nossa reinvenção. Celebra a nossa reconstrução… Confia nos jovens, nos que deram o salto, que, conscientes ou não, levam consigo a ilha. Que integrem no seu dia-a-dia, nos seus afectos. Que a (re)interpretem e que a (re)criem de acordo com a hibridez das suas circunstâncias”.

AndarIlha: Viagens De Um Hífen é este constante acto dialógico entre textos e realidade, entre o passado e o presente, entre as várias gerações que fazem e vivem a açorianidade ou a portugalidade em toda a parte, deixando de ser um outro para assumirem, sem complexos nem conflitos sentimentais, a sua condição, neste caso de luso-canadianos, e, por inferência, luso-com o restante espaço a ser preenchido conforme o seu outro país. Passamos da denúncia de um pequeno mundo a meio-atlântico que nos magoou e escorraçou durante séculos de abandono, reduzido a preces ao Divino, à integração racional e consequente numa das mais modernas metrópoles do mundo, que é Toronto & Arredores. Certas linguagens aqui, inclusive nos dois textos escritos em inglês, poderão ser interpretadas como uma catarse ou confronto metafórico com esse passado, como que num gesto de recuperação, e nunca rejeição, e em que a modernidade o reintegra nesse equilíbrio a meio da ponte, o nosso novo ser em viagem perpétua entre dois ou mais mundos, livres de fronteiras mais imaginárias do que reais. Trata-se, uma vez mais, de um conjunto de textos literários admiráveis que, lidos em sequência, constituem um vivo e ao mesmo tempo sereno diálogo com os seus leitores, não em busca de uma síntese cultural qualquer, mas sim clamando pela convivência inteligente e frutífera entre o cá e o lá. São páginas celebratórias de uma renovada ou nemesianamente replantada açorianidade noutras geografias e noutros viveiros.

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Maria João Dodman, AndarIlha: Viagens De Um Hífen, Ponta Delgada, Letras Lavadas Edições, 2016.

Publicado na minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 24 de Julho de 2016.

A pequena burguesia, entre o nada e a morte

Um Postal de Detroit

 

Qual é o espanto? Ensinas aos teus alunos a grande literatura, os doidos varridos da grande literatura, e ficas espantada quando te digo que preferi andar a pé a comparecer a uma audiência no tribunal?

João Ricardo Pedro, Um Postal De Detroit

Vamberto Freitas

A nebulosidade linguística e temática numa peça literária de qualquer género será talvez a característica quase inescapável do Modernismo a partir das obras de James Joyce nas primeiras duas décadas do século passado. Do mesmo modo, a metaficção nunca mais deixou de fascinar uma boa parte dos escritores desde então até aos nossos dias, o símbolo ou a metáfora alusiva a textos do nosso ou de outros tempo um jogo a maior das vezes obscuro, que nem sempre servirá o que mais espera um leitor no virar de páginas em busca da interpretação pessoal de significados na forma e conteúdo, ou do puro prazer do texto, algo indefinido mas que cada um desfruta segundo os mais variados critérios num acto de leitura. Creio que esta é uma recente tendência na nossa ficção, ou pelos menos cada vez mais comum na nossa melhor escrita desde os anos 80, quando toda uma nova geração surgia com força. Li a entrevista que João Ricardo Pedro concedeu ao Público aquando da recente publicação deste seu segundo romance, Um Postal De Detroit, e surpreendeu-me o seu fascínio com ligações indefinidas ou envoltas em certo mistério entre personagens, coincidências de tempos e acontecimentos na narrativa, a serenidade e a vida aparentemente convencional de uns escondendo a sua própria loucura quotidiana, possíveis transgressões que contrariam em absoluto a moral dominante na sociedade, a sua interação com os supostos “marginais” ou figuras condenadas. Por certo que a literatura é feita desse jogo de espelhos e sombras em que as nossas identidades contraditórias são reflectidas, ou mesmo forjadas, a autenticidade do nosso ser diluída em obsessões ou coabitando em subterrâneos reais e imaginários. O autor disse ainda que durante a escrita deste seu segundo romance lia alguns autores americanos, entre os quais Ernest Hemingway e Raymond Carver. Dos dois prosadores aqui mencionados, poderá o autor ter sido relembrado da clareza da frase e da ausência de adjetivação supérflua, e ainda dos seus diálogos incompletos e envoltos na indefinição ou obscuras insinuações dos seus personagens, assim como a realidade da vida privada em nada consonante com as máscaras públicas das nossas sociedades. Mais do que uma vez, o narrador na primeira pessoa de Um Postal De Detroit, de nome João, nomeia todos os objectos que da sua irmã Marta encontrou, a personagem principal e ausente desde a abertura ao fecho do romance, inclusive as leituras que ela fazia e que ele encontra entre as coisas deixadas da sua intimidade – poesia de Álvaro de Campos e A Casa do Incesto, de Anais Nin, entre os mais notáveis, a alteridade que é o fundo ou a génese natural de toda a literatura, a transgressão e proibição de que é feita toda a arte. Aliás, o chamamento a outras obras e autores é quase constante, levando o leitor simultaneamente a desviar e a aproximar a sua atenção no processo de juntar o mosaico de formas variadas em que se torna a sua trama. Será já no fim da narrativa que percebemos, ou pensamos perceber, o próprio título deste romance. Se a ambiguidade de linguagens é outro postulado da grande literatura, como queriam os new critics antes do pós-modernismo subverter – ou alargar – toda a teoria literária, Um Postal De Detroit será um dos grandes exemplos na literatura portuguesa dos nossos dias.

Que nos diz Um Postal De Detroit? Quando falo de “nebulosidade de linguagem” de modo algum quero insinuar que este romance é outra coisa senão uma brilhante e viva interpelação do próprio acto literário, da imaginação como recurso primeiro na criação de uma estória, em que nenhum personagem, nem sequer o narrador, saberá por certo o que se passou. O narrador parte de um incidente bem conhecido do país português, que foi a colisão brutal de dois comboios em Alcafache, em 1985, matando 49 passageiros e fazendo “desaparecer”, por incerteza de identificação de outros corpos, mais de 64 passageiros. É a partir daqui que o autor inventa a Marta, filha de uma mãe professora e de um pai advogado, de nome Francisco, irmã de João que está obcecado pelo seu desaparecimento definitivo, e que havia passado uma vida em conflito e na tentativa freudiana de se aproximar afectivamente dessa irmã formada em belas artes, de sexualidade indefinida, e cujos únicos rastos que deixa são os seus cadernos de desenhos à Frida Khalo, que poderão ou não representar outras personagens, conhecidas dela e da sua família. Marta tinha ido passar uns dias perto de Grândola com a sua amiga Sofia, que se suicida nessa casa alentejana de férias no mesmo dia em que Marta entra no comboio rumo à morte, ou à sobrevivência que resulta na decisão radical de enterrar a sua própria identidade, reinventando uma existência desconhecida de todos. Toda a narrativa e a sua lógica ou o seu mistério levam à tentativa de João reconstruir os seus últimos passos, e o que a poderia ter levado aos escombros de um comboio e da sua própria pessoa. A vida de uma certa classe social que nos parece demasiado conhecida, ou que imaginamos conhecer, está marcada quotidianamente pelo segredo, pelo fingimento, e pela perversão de todos os valores apregoados pela nossa sociedade. Se um dos tabus maiores, bíblicos, é a sexualidade incestuosa, se ainda a hipocrisia social, hoje quase cómica e inconsequente, numa sociedade que se quer ou se auto-considera aberta, condena toda a sexualidade-outra entre homens e mulheres, o romance de João Ricardo Pedro é uma pequena jóia de prosa escorreita e vivíssima na construção de imaginários e fantasias, as surpresas sucedendo-se ante os olhares e conjeturas de cada personagem embrenhado, direta ou indiretamente, na tentativa de João desvendar o que terá levado à morte de Sofia, e sobretudo ao desaparecimento de sua irmã. Bem sei que este é o segundo romance do autor, mas é um magnífico instante da sua capacidade de dar ao leitor personagens que, sendo necessariamente meros produtos da imaginação, nos parecem seres de carne e osso, que conhecemos intimamente, ou então que conhecemos bem mas queremos ao longe. O outro aqui é-nos demasiado próximo nos seus relacionamentos familiares, a todos os níveis hierárquicos portas adentro, nem sangue nem convivência diária permitem a entrada no ser íntimo dos que nos são próximos em tudo, menos nos segredos que carregam em si.

O pássaro voou – diz João enquanto a empregada da família tenta repor as coisas no seu lugar, o quarto da irmã evocando todo um passado desfeito ou perdido no mistério – pelo corredor. A Silvana entrou no quarto da Marta, eu travei a fundo, apoiando as mãos na ombreira da porta, espreitando ora lá para dentro, ora para o fundo do corredor, dividido entre a necessidade de apanhar o pássaro e o medo de que a Marta pudesse aparecer a todo o momento e zangar-se comigo por estar a mexer nas suas coisas, a vasculhar nas suas coisas, a meter o nariz onde não era chamado. O pássaro pousou no estirador, no candeeiro, no cavalete. Meteu-se atrás do livro do Caravaggio, do livro do Cézanne, do livro do Hopper, do livro do Munch, do livro do Schiele, do livro do Bosch. Afiou o bico na fiada de cassetes de música. Derrubou com as asas a fotografia da Marta numa praça de Barcelona. A Silvana, ao tentar apanhá-lo, derrubou a fotografia em que Marta aparece abraçada a uma amiga na Praia da Zambujeira do Mar…”

Eis a clareza de um cenário descrito com precisão, a mostra completa de uma personagem e os seus mundos aparentes, o que a movia e comovia, sem entretanto nada esclarecer sobre quem é ou foi a Marta agora desaparecida. Por certo que a história de duas famílias “de bem” está a ser (re)construída trinta anos depois dos acontecimentos decisivos que culminaram com o inesquecível acidente, e a morte sem explicação de duas mulheres que teriam o mundo todo a seus pés. João Ricardo Pedro, que recebeu o Prémio LeYa pelo seu primeiro romance, O Teu Rosto Será O Último, em 2011, e que o veria traduzido e elogiado em várias línguas, como que presta homenagem nestas páginas não só à literatura, uma vez mais, como um acto de pura imaginação, a todas as artes, às infindáveis representações da nossa humanidade nas mais distantes e próximas épocas, tal como evoca variadas referências que fazem parte indissociável de uma narrativa que tem uma mulher-artista, ainda incompleta mas já obcecada com as imagens reinventadas nas folhas de desenhos e pinturas. Por vezes o seu irmão e narrador parece um Benjy faulkneriano adulto, absoluta e mentalmente perturbado, a relatar o que pensa ter visto e ouvido no seu passado, sem conseguir ligar nada e ninguém a um evento tão decisivo na sua vida. Cabe ao leitor juntar as peças, cabe só ao leitor toda e qualquer dedução, sem nunca poder chegar a uma única certeza, tal como todos os seres inventados nesta ficção. O postal enviado de Detroit por Francisco à sua filha em Portugal poderá conter insinuações, mas isso pouco importa. O que sobressai destas páginas é uma viagem pelas linguagens do afecto e do ódio, pela incompletude de cada momento vivido, sinais do ser e estar de cada um, mas nunca definindo ou desvendando os seus segredos de alma. Poderá ser também, permitam-me insistir, que todo este som e fúria nada significa – ou então significa que somos isto, e só isto.

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João Ricardo Pedro, Um Postal De Detroit, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2016. Publicado na minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 17 de Junho, 2016.

O conservadorismo rebelde de um escritor

Capa Vamos ao que interessa

Voltaire sabia, como Hitchens soube, que a morte não passa de um facto sem grandeza. Porque de nós, do que fomos ou fizemos, tudo o que restará é apenas o exemplo.

João Pereira Coutinho, Vamos ao que interessa

Vamberto Freitas

Escolhi este passo de Vamos ao que interessa, o novo livro de João Pereira Coutinho, por várias razões que têm tudo a ver com a minha já longa admiração pelo colunista da Folha de São Paulo, e agora também, pelo que me dizem, do lisboeta Correio da Manhã. Li e tenho na minha estante o seu Avenida Paulista, e por algumas vezes tive o privilégio de o ler enquanto bebericava uma cerveja algures no interior de São Paulo, ou seja, no próprio terreno a que se dirigia um portuga cuja linguagem contradiz muito do que pensam de nós naquelas partes. Não é fácil a um esquerdista vindo dos anos 70 admitir publicamente estes pecados num país tão sisudo e estratificado ideologicamente como o nosso, mas eu também venho de outras geografias muito mais vastas, abertas e diversificadas. Parafraseando alguém, eu dizia a quem me perguntava que o maior alívio no meu regresso à pátria era não ter de ler diariamente a primeira página do (conservador) Los Angeles Times, a voz muito patriótica e auto-convencida do oeste americano, a voz do capitalismo à moda californiana, ou seja, do dinheiro como valor absoluto, inquestionável. Essa era outra mentirinha minha, pois um dia sem abrir as suas páginas de opinião e rir com o cartoon do australiano Paul Conrad era um dia incompleto. Los Angeles e o seu “bairro” autónomo ali ao lado, chamado de Hollywood, pensam-se os expoentes sem par de cultura e prazer, ou talvez só da cultura do prazer e da adolescência perpétua, como no romance pouco angélico Menos Que Zero, de Bret Easton Ellis. Não foi surpresa alguma para mim que João Pereira Coutinho tem mais ou menos a minha opinião sobre esta faceta da indústria cinematográfica que monopoliza – a opinião é minha – uma das cidades mais feias e incultas dos Estados Unidos, e onde como jovem universitário dos arredores mais calmos e racionais eu me passeava nas suas duas avenidas principais com alguns colegas aos sábados à noite, só para ver os freaks que por lá se exibiam. Queria apenas dizer que desde as minhas primeiras leituras do autor aqui em foco creio ter topado a sua visão existencial, que tem a ver com muito do mundo anglo-saxónico, versão britânica e oxfordiana, sem nunca abdicar da sua inteligência e capacidade crítica, não tanto no que diz respeito à política, mas sim quanto à influência esmagadora do bom e do desprezível que reinam em todos os cantos do globo. Um dia gostava de lhe perguntar o que é que, exactamente, ele gostaria de “conservar” em Portugal, sabendo que a palavra significa, em termos de ideologia e postura filosófica, muito mais do que essa minha interpretação simplista do termo, e que me provocava arrepios durante boa parte da minha vida americana. João Pereira Coutinho faz-me lembrar um outro conservador que eu lia e ouvia sem falhar, e que por acaso visitava os Açores nas suas viagens de iatista milionário, e assistia à missa numa igreja da Horta, espantado com o reacionarismo de certo padre – William F. Buckley, católico assumido, esse que no seu gabinete de trabalho tinha um relógio cujos ponteiros andavam para trás simbolizando a sua aversão à sociedade esquerdizada que ele pensava ser a América da última metade do século passado. É certo que há uma semelhança muito próxima, mas nem sempre confundo o termo “conservador” com “direita”, e tudo o que isso implicaria na luta política numa sociedade livre. Alguma da melhor literatura modernista ocidental veio de quem poderia ser – ou era – arrumado nessa categoria, que também é um pressuposto intelectual, um T. S. Eliot entre eles, digamos, e um Fernando Pessoa, ou, no nosso tempo, Agustina Bessa-Luís. Acredito haver uma diferença entre nós e eles, os conservadores e os da minha laia: onde vemos a tragédia, eles vêem a muito antiga comédia humana, onde queremos aplicar receitas, eles encolham os ombros, como que a dizer, seria bom, mas não resolve nada, onde escrevemos parágrafos longos e chatos, eles escrevem frases curtas e lapidares. Um livro de trezentas e quarenta e sete páginas, como este Vamos ao que interessa, e que não menciona um único nome de um político português, merece de imediato a minha adesão. Estou consciente de que o público leitor maioritariamente de São Paulo a quem se dirigem estes escritos não conhece quem são, e se conhecesse, não quereria saber. A sua aguda capacidade de desconstruir, ou pelo menos de rever, desde a mais banal à mais aguda questão social ou cultural do nosso tempo e das suas geografias transatlânticas, proporciona-me momentos de proveito e raro prazer, nestes que são textos jornalísticos que rareiam no nosso país. Se não digo na nossa língua é porque sei muito bem que os grandes mestres da crónica clássica são quase sempre e historicamente da terra brasileira.

Vamos ao que interessa está organizado por capítulos conforme a temática abordada, e li-o em sequência como se de uma narrativa de fôlego se tratasse. Uma coluna que valha o espaço num grande jornal olha para o seu objecto ou sujeito e torce-o ou retorce-o através de linguagens que quase se tornam uma personagem. Para mim, ler João Pereira Coutinho não será tanto o que ele diz, mas sim o modo como, a frase pirotécnica que nos agarra toda a atenção, nos faz virar as páginas em busca do seu olhar simultaneamente rebelde e sereno, o dizer de quem não quer nem deseja convencer os leitores sobre seja o que for, apenas reafirmar que há outros modos de estar e ser na comédia primordial que é a nossa existência. Como se diria sobre um outro grande cronista português, Onésimo Teotónio Almeida, nunca ri de, mas sim com o seu sujeito. O humor fino é uma raridade na literatura ou escrita de qualquer género em Portugal, geralmente o escritor sabe tudo e os outros nada, confundindo-se frequentemente com o que não passa de sátira feroz e esmagadora, “o pisar e repisar da vítima”, como também me diria em entrevista o falecido José Martins Garcia, autor de uma vasta obra, que inclui dois títulos bastante significantes, Katafaraum É Uma Nação e Contrabando Original, com certa noção de esperteza alegre. Um livro, um filme, um quadro, uma noite entre académicos ingleses nas suas bebedeiras quase cerimoniais de fim-de-semana nos bares situados numa das vizinhanças mais sérias, criativas e conservadoras da academia internacional que é Oxford – é o riso desconcertante que consegue por instantes que sejamos todos capazes da auto-depreciação ao olharmos os espelhos que nos devolvem a verdade nua e crua, e que se não nos fazem aceitar o outro, obriga-nos a olhá-lo com tolerância e sabedoria, a reconhecer que em última instância somos iguais tanto na loucura como na seriedade da vida. No mini-ensaio que é “Imaginar Sísifo feliz” João Pereira Coutinho relembra-nos que, assumamos a ideologia ou a mundividência que quisermos ou em que estamos catalogados por outros, a verdade permanece, a condenação é universal e vem do fundo e do início do nosso ser. Aprendamos a aceitar a pedra às costas ou a rolar montanha abaixo ou montanha acima, revoltados ou resignados, ninguém a segura ou se safa da sua sorte. É ainda no texto “Exemplos terminais” que o autor derrama, por assim dizer, muita da sua inteligência afectiva e disponibilidade para o diálogo e admiração perante um outro, o ensaísta inglês Christopher Hitchens nos seus últimos dias de vida em Nova Iorque, contados no livro Mortalidade, esse que sempre esteve no outro lado da barricada ideológica e política, o inveterado ateu que um dia afirmou que Henry Kissinger deveria ser julgado num tribunal internacional por alegados crimes de guerra.

Finalmente, o tema inevitável: Deus. Quando se soube – escreve João Pereira Coutinho num tom que adivinhamos de desprezo pelos que pulavam de contentes com a má sorte de Hitchens – da doença, percorreu por um certo mundo crente o frémito de que a doença era um castigo de Deus a um ateu militante e, atendendo à localização do tumor, vociferante. Essa foi a primeira versão do regozijo fanático. Mas houve outra, em variação mefistofélica: o cancro era um teste último para que o mais famoso ateu do planeta renunciasse às suas ‘blasfémias’ e abraçasse uma qualquer espécie de fé ‘terminal’… Em relação aos segundos, Hitchens prefere evocar Voltaire, que na hora da morte foi convidado a renunciar ao diabo. Resposta do francês: ‘Este não é o momento para fazer novos inimigos’”.

Nunca li o ensaio sob o título de Conservadorismo, de João Pereira Coutinho, doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais e Professor na Universidade Católica Portuguesa. Vinte e sete anos de Califórnia, quase todos eles vividos em Orange County, onde fica a minha alma mater, mas também a biblioteca-museu de Richard Nixon, vacinaram-me contra certas tentações sócio-políticas. É certo que tudo isso foi antes de um Donald Trump numa margem da sociedade e de Bernie Sanders na outra. Dessa pregação ouvi mais do que queria e necessitava. É-me difícil imaginar um “conservador” português à maneira anglo-saxónica, ao contrário de um homem ou mulher de “direita”. Sei que existem essas poucas excepções, e o autor de Avenida Paulista e Vamos ao que interessa relembra-nos que no nosso jornalismo também é possível a civilidade, o reconhecimento do outro, a abertura ao diálogo sem nunca se trivializar a pessoa com quem não mantemos afinidades ideológicas ou políticas.

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João Pereira Coutinho, Vamos ao que interessa, Lisboa, D. Quixote/Leya, 2015. Publicado hoje na minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 10 de Junho de 2016.

Toda a mítica do oeste americano

capa Butcher's Crossing

Nem tão-pouco conseguia recordar a força dessa outra paixão que o impelira a atravessar meio continente rumo a uma terra bravia onde sonhara poder encontrar, como numa visão, o seu eu inalterável.

John Williams, Butcher’s Crossing

Vamberto Freitas

É exactamente a meio da grande narrativa que é Butcher’s Crossing, de John Williams, publicado originalmente em 1960, onde encontramos o parágrafo que interliga tudo o que antes e depois parecerá uma brilhante paródia aos melhores filmes do oeste, em que Hollywood, simultaneamente, inventava toda uma tradição, e reinventava, do mesmo modo, toda uma ideologia oposicionista durante os anos da realização dessas mesmas produções, os anos 40 e 50 da Guerra Fria e do capitalismo já então desenfreado. A mensagem marxista escondida nalgumas dessas histórias de pistoleiros, dos bons e dos maus em luta pela terra e pela lei, era consentânea com uma indústria do cinema furiosa e perseguida pelo pior de uma sociedade democrática – a ignorância das massas como aliada do sistema de acumulação sem limites da riqueza do país, nas mãos – hoje mais do que nunca – de umas poucas multinacionais e indivíduos ou famílias. Tanto o cinema como a literatura mais lida no país, sabendo de um planeta desequilibrado em tudo que se refere à existência da maioria de nós, perderam a coragem das ideias, e limitam-se a propor, como adolescentes ofendidos, uma visão apocalíptica de grandes desastres, a humanidade armada contra terrores inexplicáveis e planetariamente malignos. A nossa radical contingência existencialista da actualidade, no entanto, recomeça a provocar na arte de toda a parte o regresso das ideias e da ideologia, ou como diria a filósofa brasileira Marcia Tiburi numa recente entrevista, “a politização da estética”. Não será mero capricho que leva um realizador como Sam Mendes, um britânico tão dedicado à desconstrução do chamado sonho americano, a anunciar que quer fazer um filme deste Bucther’s Crossing, que espantosamente só encontrou os seus leitores décadas depois de ser escrito e publicado, e como resultado da francesa Anna Gavalda ter descoberto e traduzido um outro romance do mesmo autor, Stoner, que levou os próprios americanos a reconsiderar uma das mais ignoradas e até há pouco obscuras carreiras literárias no seu país. Aliás, foi assim quando Jean Paul Sartre leu a obra de William Faulkner, até então a passear-se na pequena praça da sua Oxford, em Mississippi, e a beber até à morte sem que ninguém desse por isso, após já ter escrito O Som e a Fúria, um romance de grande fôlego temático e originalidade estética na transfiguração da condição humana, tal como era vivida no seu pequeno e inventado Yoknapatawpha County. Faulkner. Segundo Malcolm Cowley, citado por Joseph Blotner na sua biografia do autor sulista, Sartre diria que “para os jovens em França, Fulkner é um deus”. Butcher´s Crossing é também uma revisitação a toda mítica americana em volta da conquista do continente, uma implacável, repita-se a palavra, desconstrução da suposta heroicidade e inocência de homens e mulheres destemidamente a apropriar-se da terra e alma de uma nova nação, da justeza questionável dos seus actos, de um sistema societal que inevitavelmente acaba numa fogueira de coisas, e da fuga na pradaria rumo ao nada ou a outra sorte dos seus provocadores. “John Williams – escreveu o ensaísta Kim Kreider na The New Yorker, em 2013, quando o romance Stoner reencontrou o seu devido lugar, pelo menos entre os críticos – foi arrumado naquela categoria pouco invejável habitada por um rol augusto, que inclui Richard Yates e James Salter: um escritor de escritores/a writer’s writer”. Mestre dos seus pares. De modo algum acho essa sorte “pouco invejável”, mas sim o contrário.

Burcher’s Crossing (que aqui poderá ser traduzido como Entroncamento do Carniceiro, um vilarejo improvisado no oeste americano a meados do século XIX, no interior do estado de Kansas, a semântica da tradução interpretativa aplicável também a toda a acção, negócios e trama do romance) tem como seu protagonista Will Andrews, um jovem de 23 anos, que decide abandonar os estudos em Harvard, em 1870, e uma família de bem em Boston, já então a cidade referencial e de enraizamento de toda a elite anglo-americana num país em construção, virado desde logo para esse oeste de aventura e mistério, de riqueza instantânea e morte anunciada, levando consigo uma herança antecipada de alguns milhares de dólares. Por mais que alguns ensaístas revisionistas denunciem a prosa e filosofia do canónico Walden, publicado em 1854, pelo seu simplismo e desonestidade, a verdade é que a obra de Henry David Thoreau capta muito do que o sábio, também de Boston, intuía sobre a condição da vivência americana já naqueles primórdios, “o desespero tranquilo” com que o autor descrevia a vida dos seus concidadãos em busca do seu sonhado lugar no novo mundo. Andrews decide ir numa caça aos búfalos nesses territórios sem lei nem dono, e chega um dia à dita vila em busca de parceiros e tutores para a sua viagem iniciática nessa outra e radical experiência então em curso, que era a expansão caótica e selvagem do novo país. Não é a História ou qualquer projecto de riqueza que o move, mas sim a procura do seu próprio ser, a também mítica noção de um suposto rito de passagem, uma prova da sua coragem, e talvez da sua masculinidade numa era de todo caracterizada por uma violência quase teológica entre homens e natureza. Andrews parte com o companheiro-chefe e atirador de nome Miller, com quem havia negociado os termos da caça, e um cozinheiro meio bèbado e sempre de Bíblia na mão, assim como com um especializado esfolador dos animais abatidos para a viagem às Montanhas Rochosas. Aí acontecerá a matança sem amarras de milhares de búfalos, de que somente querem as peles para venda e fabrico de roupas e malas. No que ainda se chamava simplesmente os Territórios de Colorado, fazem lembrar o obcecado capitão Ahab em Moby Dick, na perseguição da Natureza indiferente e inocente, a pradaria agora como que um mar sereno, as montanhas cobertas de neve e ventania congeladora tornadas ondas insuperáveis e assassinas. O simbolismo aqui é de uma subtileza preciosa, estão, afinal, a conspurcar a terra dos outros, no mais ganancioso e irracional imperialismo interno. Numa única cena a lembrar tudo isto, os quatro matadores-empreendedores passam, nessa sua determinada ida para o lucro e talvez para a morte, uma casota de uma família de índios sentados à sua beira, de olhar sereno, a sua paz algo incompreensível e sem significado para estes homens. O resultado da campanha, que dura alguns seis meses, é mais ou menos inesperado, mas a heroicidade das narrativas tradicionais do oeste é lembrada com a mesma ambiguidade que marca assustadoramente toda a vida humana. Andrews descobre o inferno, e depois derrama a sua incapacidade de amar na cama de uma prostituta alemã imigrante, de nome Francine, e que ele havia conhecido no bar da pequena povoação pioneira.

No decurso da última hora de caçada – escreve o narrador, sintetizando aqui o que parece ser o grande tema deste romance, e que mencionei nas primeiras linhas deste texto – acabara por encarar Miller como um mecanismo, um autómato, que se movia de acordo com o movimento da manada, e acabara por encarar a chacina praticada por Miller não como uma ânsia de sangue ou uma ânsia das peles ou uma ânsia do que as peles venderiam, ou sequer, enfim, como uma cega ânsia de fúria que se revolvesse obscuramente dentro dele: acabara por encarar a matança como uma fria e indiferente reação à vida em que Miller se tinha embrenhado. E olhava para si mesmo, a rastejar em silêncio atrás de Miller pela planura do vale, a apanhar os cartuchos vazios que ele ia consumindo, a arrastar a barrica de água, a tratar da espingarda, a limpá-la, a passá-la a Miller quando ele precisava dela – olhava para si mesmo e não sabia quem era, nem para onde ia”.

De regresso a Butcher’s Crossing, a pequena cidade de madeira e pó está quase deserta, os seus habitantes drasticamente reduzidos, resta só a memória apenas de sombras tornadas fantasmas, os que tinham vindo do desconhecido, perdidos ou mortos agora em nenhures. A sua identidade, como a de Will Andrews, perpetuamente em suspenso, a fuga ao desespero, a busca de si próprios dissipada no sonho da glória imaginada. O continente virgem volvendo aos velhos demónios da humanidade, a visão do inferno e da injustiça no suposto país de Deus. Butcher’s Crossing pareceu-me por vezes a paródia implacável dos antigos filmes hollywoodescos, e ao mesmo tempo como uma alegoria da história de descobertas e conquistas que subjugaram todas as novas geografias à muito antiga maldição, ao pecado original. As últimas páginas do romance contêm outra fogueira de peles abandonadas, rejeitadas pelo próprio mercado que incessantemente reinventa as suas coisas e desejos, deixando cair na sarjeta tanto os mais atrevidos como os inocentes úteis. Andrews não volta, não quer, não pode voltar mais às suas origens depois do que viu e viveu, rejeitando o amor que Francine lhe ofereceu, incapaz de se entregar à serenidade que ela própria representa e procura. Miller é visto em fuga, pradaria fora no seu cavalo rumo a outro destino incerto e sem razão.

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John Williams, Butcher’s Crossing (tradução de J. Teixeira de Aguilar), Lisboa, D. Quixote/Leya, 2016. Publicado na minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 03 de Junho de 2016.