Algumas Viagens

Vamberto Freitas é uma avis rara. É um questionador. Numa terra estrangeira, por pura necessidade própria – prática e espiritual, e atrever-me-ia a dizer – ligou-se a um mundo que, tivesse querido ou não, herdou.

George Monteiro no prefácio ao meu ‘Jornal da Emigração – a L(USA)lândia reinventada’

Vamberto Freitas

Vivi quase três décadas na América do Norte, e posso dizer que muito por lá viajei, desde a grande área de Los Angeles por toda a parte. A minha corrida preferida ia dessa área até à minha família no Vale São Joaquim, a três horas e meia de carro a alta velocidade numa mítica auto-estrada chamada 99. Entretanto, num ano em que já não me lembro atravessei o Deserto Mojave até ao Grand Canyon na companhia de Onésimo T. Almeida e de outro amigo comum, que tinha vivido no Canadá e foi membro dos seus nadadores olímpicos, o que me trouxe prazeres e descontamentos durante quase toda a viagem. Parávamos a meia viagem e eles os dois mergulhavam numa piscina de hotel, e nem eu sabia nadar, limitava-me a ler jornais e a beber cerveja, disfarçando as minha inabilidades da melhor maneira que me ocorria no momento. Chegámos a Las Vegas, que ainda hoje detesto pelas suas luzes exageradas e os seus casinos mafiosos. De qualquer modo, sobrevivi, quase já sem dinheiro algum, gasto nos bares e naquelas máquinas de roubo puro. Cheguei a casa são e salvo, jurando que nunca mais, com ou sem amigos queridos como estes. Estamos nessa altura nos anos 80, e escrevi um artigo publicado em São Miguel com o título “Com Onésimo T. Almeida na lUSAlândia e em toda a parte”. Essa peça jornalística foi escrita já depois de eu ter regressado definitivamente aos Açores. Bom, no fim dos anos 80, nos Encontros Literários da Maia (hoje já míticos entre as novas gerações) , o que deu lugar a visitas suas à Califórnia, e acabariam por uma viagem de carro de uma ponta da América no Oeste até à outra na Costa Leste, onde embarquei o meu carro e seguimos de viagem até às ilhas.

“Mississippi, localizado no coração geográfico e cultural do sul, – escrevi noutra parte e há muitos anos – é o paradigma fundamental de toda a tragédia humana e histórica naquela parte do país americano. É, ao mesmo tempo, um dos mais pobres e ricos estados da União. O seu estatuto – real e psicológico – de periferia autêntica fá-lo combinar a dor do seu passado com o triunfo que daí provém – uma poderosa e talvez inigualável literatura dos nossos dias. Para além de Faulkner, é a terra de todo um grupo de escritores que também viriam a tornar-se conhecidos, alguns deles, em todo o mundo letrado – Eudora Welty, Tennessee Williams, Walker Percy, E. Spencer, Richard Wright e William Morris, só para falar dos mais famosos”.

Entre muitas outras cidades do interior e da costa atlântica fomos à Carolina do Norte prestar homenagem a Thomas Wolfe, que faleceu em 1938. Uma vez mais, visitámos a sua Casa-Museu e cemitério assim como a sua universidade de Chapel Hill. Tenho nas minhas estantes pedrinhas e terra da sua cidade, assim como uma reprodução do exterior da sua casa de nascença e um quadro com seu o perfil oferecido por uma antiga colega e amiga da Cerritos High School, onde dei aulas durante 14 anos. Thomas Wolfe, como me diria um dia o meu falecido e jubilado amigo George Monteiro, da Brown University, foi um romântico modernista, passe a contradição associada em mim para sempre a um génio da literatura, mesmo que hoje esquecido pela academia. Tem dois romances, entre toda uma numerosa, gigantesca obra, que ainda hoje me comovem: Look Homeward Angel e You Can’t Go Home Again. De resto, foram outros estados de conhecidos escritores ao longo do grande país. Visitámos Washgington, D.C. mais por obrigação de dois cidadãos americanos do que pela curiosidade. A parte da Casa Branca em que podem entrar turistas não me deixou a mínima lembrança ou saudade. A paisagem de quase todos os estados americanos é, no entanto, deslumbrante. Cheguei a ir à capital com a Adelaide a um congresso sobre literatura americana. A mesma impressão. Nada mais, sair de lá foi um alívio, rumo finalmente às casas dos nossos amigos e imigrantes e luso-americanos em Rhode Island e Massachusetts. Esta, sim, é a minha América.

Pouco depois de regressar aos Açores, viajei por vários países europeus: Holanda, Reino Unido, Irlanda, Isle of Man, Áustria, Bélgica, República Checa, Hungria e Alemanha. Para ser absolutamente honesto, já não tenho a suficiente paciência para mais museus, catedrais e arqitectura, mesmo que nunca tenha ido à Itália ou à França. Já não sinto qualquer necessidade de sofrer aeroportos gigantescos e confusos. Gostava de ver a Rússia, mas sem grandes pressas caso os deuses sejam benevolentes para comigo. Que trouxe destes países? Bom, alguma coisa, mas como um dia disse a um grande amigo quando deixei os EUA, agora não me lembro de nada que me tenha tocado profundamente. Muito mais do que cerebral, acho eu, sou emotivo, e a “frieza” humana e climática do norte pouco me diz. Também estive várias vezes no Canadá, uma delas em pleno inverno, mas gostei. Fez-me lembrar o outro lado da fronteira a sul, e aí, sim, senti-me em casa. Toronto não me disse muito, mas disseram-me com carinho e amizade os contactos privados e várias casas de gente conhecida e outras situações. No México conheci um povo maravilhoso, educado, e com uma grande curiosidade sobre o meu país. Diziam-me, naturalmente em espanhol e com admiração, és do “país dos cravos”. Foi no ano de 1975. Nunca mais os esqueço ou deixarei de ter saudades deles.

Guardei para o fim a minha viagem a Florianópolis (Santa Catarina) e a Porto Alegre, no Brasil, quando fomos participar em encontros literários e culturais denominados “Travessias”, convidados por colegas daquela parte do mundo. Foram dias e momentos que serão sempre inesquecíveis. Por isso vou reproduzir aqui esses momentos através de um texto que escrevi em 2005, intitulado “Sobre Travessias no Brasil”: Foi muito noticiada no arquipélago a ida de um grupo de escritores açorianos a esse primeiro encontro intitulado, repito. Travessias: Encontro de Escritores Atlânticos – Açores-Brasil em Florianópolis e Porto Alegre, esses berços históricos com mais de 250 anos da nossa presença naquela parte do Brasil. Não podia deixar de adiantar aqui algumas outras ideias e informação, apesar de a nossa Imprensa já ter publicado alguns artigos vindos do Brasil sobre a génese e o desenvolvimento de Travessias, que continuarão nos próximos anos, se houver a mesma boa vontade e valorização dos patrocinadores, especialmente por parte do Governo Regional dos Açores. É claro que durante muitos anos e nas mais variadas situações, toda a diáspora açoriana tem comunicado entre si, mas agora é a Cultura directa e activamente partilhada por todo o nosso povo nesse outro e vasto Triângulo Açoriano transnacional (Ilhas/Continente, Brasil e América do Norte); que começa a desenhar-se com o povoamento das Ilhas e se estende vigorosamente até aos nossos dias de e/imigração e consolidação em geografias reais e de afectos indeléveis. Pessoalmente, eu tinha a experiência de imigrante nos Estados Unidos, e conhecia a nossa presença no Brasil através de livros e dos contactos durante anos com grandes amigos e colegas. Nada me tinha preparado (nem a outros da nossa comitiva) para o que encontraríamos no Brasil “açoriano”, não só nas duas cidades do referido Encontro, mas também noutras como Pântano do Sul na Ilha de Santa Catarina), e depois Rio Pardo (cidade agro-pecuária, “a última fronteira ou bastião onde chegaram os açorianos ao continente do sul”).

Sangue do nosso sangue, o seu imaginário açoriano permaneceu ao longo de dois séculos e meio vivíssimo e na plenitude de uma memória colectiva hoje perpetuada e experienciada diariamente nos seus comportamentos, nas suas “saudades”e na monumentalidade visível das cidades que fundaram, e que outros das mais variadas nacionalidades lá fixadas reconhecem como um direito histórico por todos a ser respeitado e acarinhado. Desde de nomes de instituições de vária natureza, nomes de ruas e de edifícios até à culinária e literatura, um punhado de “casais” que nos deixaram a meados do século XVIII e seguiram o então reduzido exército da Coroa ocupariam o território e fundariam o muito que de bom e original tem desde sempre a grande Nação Brasileira.

___

A última e outras partes deste texto foram tiradas de outros escritos logo depois destes dos meus andamentos no mundo, muito especiais para mim. Uma longa página deste ensaio vai ser publicada, em conjunto com outros autores, no livro Viagens das Letras Lavadas, aqui de Ponta Delgada. A foto é de Ashivlle, North Carolina, a terra de nascença de Thomas Wolfe.

Conversa com Nuno Costa Santos em Arquipélago de Escritores, 2020

Manteve sempre uma ligação às comunidades açorianas nos EUA, no Canadá e no Brasil, escrevendo sobre livros de autores descendentes de açorianos… representando hoje umas das pessoas mais competentes para escrever sobre livros de autores americanos de diferentes proveniências.

Nuno Costa Santos, Grotta 4

*

Nuno Costa Santos – Disseste que durante muito tempo esqueceste Portugal. Podes falar um pouco disso, dos motivos pelos quais isso aconteceu?  

Vamberto Freitas –  Sim. Durante alguns anos Portugal tornou-se-me irrelevante. Sabia que o meu futuro todo (o que não viria a acontecer) estava na América. Portugal era então uma Ditadura vergonhosa, fascista, colonialista, intolerante e raivosa. Eu não queria ter nada a ver com esse país. A minha língua e cultura de origem nunca foram por mim desprezadas. Só que agora vivia num país que era decente, apesar de tudo o que sabemos e das suas acções mundo fora. Mas dava-nos a liberdade de contestar tudo isso sem uma polícia secreta à nossa porta e sem nunca nos proibir de ler ou pensar o que quiséssemos. Desde o primeiro ano de faculdade que me juntei à hoje pouco falada Nova Esquerda/New Left. Era acabar com a guerra no Vietname e lutar pela justiça portas adentro, pelos Direitos Civis que os afro-americanos tinham iniciado com coragem e sentido de cidadania total, beneficiando todas as outras minorias étnicas. Eu olhava para a minha antiga cédula de nascimento e já não me reconhecia em nada daquilo. A minha professora Nancy Terry Baden, já aqui referida, tentava que eu “regressasse a casa” em termos não só reais como metafóricos. Acabaria por conseguir. Como eu então escrevi: Portugal, os Açores, eram para mim apenas uma lembrança mais teórica do que real. Quando em 1972 visitei os Açores pela primeira vez depois da minha emigração, tudo então me deu mais desgosto. Uma outra professora com quem estudei política internacional sabia desta minha atitude. Um dia chamou-me à parte e ofereceu-me um livro, e disse-me que eu tinha de o ler com toda atenção: The Liberation of Guiné: Aspects of an African Revolution, escrito pelo então grande especialista britânico Basil Davidson, que conhecia a luta em África melhor do que ninguém, e concentrava-se, neste seu outro livro, em Amílcar Cabral. Dentro vinha uma dedicatória dessa mesma professora, sem meias palavras: “To Vamberto for the liberation of Guiné, Portugal and the U.S”. Guardo-o ainda hoje aqui numa das minhas estantes como um tesouro que muda vidas e destinos. Só que pouco depois ainda aconteceu o 25 de Abril de 1974, o ano em que me formei. Mudou tudo em mim. “Regressei” a casa mentalmente, e por inteiro, o meu país já não me era uma vergonha, mas as origens do meu ser, dos meus antepassados, da minha outra cidadania. Até hoje.

NCS –  Como é que resolveste voltar ao interesse por Portugal, em geral, e pelos Açores, em particular?

VF Quando me formei em 1974, a minha candidatura ao doutoramento na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, tinha sido aceite. Durante esse Verão trabalhei para juntar algum dinheiro que eu não tinha, nem queria pedir mais a meus pais. Recebi um telefonema de um açoriano que eu não conhecia, mas já era director de uma nova escola do ensino oficial secundário californiano, Cerritos High School. Que queriam falar comigo. Fui lá e entrevistaram-me. Pouco tempo depois ofereceram-me um lugar de professor a tempo inteiro. Aceitei pois, e pensei: bom, vou ganhar e guardar algum dinheiro para os meus estudos finais. Quando acabei o primeiro ano, ofereceram-me mais um. Ao terceiro tive de optar – se ficasse, tinha de aceitar o estatuto de professor efectivo. Adeus doutoramento. Entretanto, eu já escrevia para jornais de língua portuguesa nas nossas comunidades, e fazia rádio com vários amigos e colegas açorianos. Em 1979 recebi um telefonema de Mário Mesquita, já director do Diário de Notícias, em Lisboa. Que me queriam como correspondente do jornal na Califórnia. Aceitei, espantado pelo facto de terem notado a minha escrita em pequenos jornais; mas fora o Onésimo que me recomendara. Comecei a ser convidado para eventos literários, sobretudo pelos míticos encontros da Maia no fim dos anos 80, aqui em São Miguel e em Lisboa. Estava divorciado, e conheci uma grande senhora de nome Adelaide Batista, que depressa passaria a ser Adelaide Freitas. Ofereceram-me cá vários empregos, mas tive a felicidade de ser convidado para Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores, e já vou no 29º ano de ensino nesta instituição, que faz parte indelével da minha identidade profissional. Sofri a minha maior tragédia, que foi perder muito cedo a minha grande companheira e esposa. Mas eu queria voltar ao meu país, agora livre e em pleno desenvolvimento. Nunca me arrependi, nunca viveria noutra parte. A América está em mim da melhor maneira: na imaginação, nos meus livros, e na maior parte da minha família que lá vive.

NCS –  Como é que sentiste o teu regresso aos Açores, para Ponta Delgada?  

VF – Como diria o outro sobre a Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Passei dias de grandes dúvidas, até me levar ao choro. Só que tinha a minha lado uma grande mulher. Renasci para a minha nova vida e comecei quase de imediato a dar aulas na Universidade dos Açores como Leitor de Língua Inglesa, o que me colocou na minha vocação de sempre, pois já tinha sido professor numa grande escola secundária californiana durante 14 anos, como já atrás referi. De imediato apareceram os amigos de sempre, e de seguida outros, que também se aproximaram com amizade e afecto. Recomecei a escrever sem demora para os jornais locais, e permaneci como colaborador literário do Diário de Notícias até 1994. Fui convidado para director da RDP/Açores (que não aceitei), e uns anos mais tarde para assessor de Carlos César para a política externa (que voltei a não aceitar). Já nessa altura me sentia completamente em casa no meu mundo intelectual e literário. O destino foi muito bom para comigo, menos nessa minha tragédia prolongada da doença da Adelaide inevitavelmente levando-a à morte. Tudo quanto faço hoje é uma espécie de homenagem à sua memória, assim como à minha nova companheira, Ana Cabral, que continua a ajudar-me a navegar os labirintos complicados de uma pequena ilha.

NCS –  Já conhecias muitos autores açorianos. Mas como é que foram constituindo um grupo, plural e diverso, capaz de se unir, como aconteceu com os célebres encontros literários da Maia?

VF – Os encontros da Maia foram decisivos. Juntavam várias gerações vindas de toda a parte. A minha preocupação literária já era então o que ainda permanece em mim: prestar homenagem aos melhores que nos antecederam, analisar e escrever sobre os da minha geração, e agora juntar os mais novos a este quase incrível movimento literário. Trazer até nós os escritores continentais e luso-descendentes é outro tema que me ocupa diariamente. José Medeiros Ferreira dizia que éramos o último “grupo” literário em Portugal, coerente mas aberto a todos os talentos.. Estamos a conseguir concretizar estes desejos ou objectivos. A geografia existe, mas as fronteiras não. Até os brasileiros e os africanos de língua portuguesa já participam nas nossas iniciativas. A “nação” literária na nossa língua é já praticamente uma realidade. Vai juntar mais escritores que por enquanto se sentem afastados ou ignorados. Não estão. Estamos todos na liberdade da aproximação e respeito mútuo, e nunca do afastamento.

____

Uma outra parte da entrevista que concedi a Nuno Costa Santos na revista Grotta 4, no evento Açores Arquipélago de escritores, no qual fui homenageado. Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2020. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 19 de Junho de 2020.

Luís Filipe Sarmento

Poema/Inglês

I Am A Man Born Of Women In Verse

Titulo original em Português:”Sou Um Homem Feito De Mulheres Em Verso”. O Seu Face é aberto. Podem ler muito mais da sua escrita genial.

Este poema foi traduzido por mim.

If I say mother, I mean Italy; if I say grandmother, I mean an island,

if I say great-grandfather, I mean Galicia; if I say great-grandmother, I mean France

One great-great grandfather in Greece, another in Damascus;

One a gypsy lost in India, another in the streets of Palestine,

If I reach to the tenth grandparents, I’ll be from everywhere,

I have my origins everywhere, conceived in all religions;

I come from a pirate and surely from a whore,

from a maharajah and from a courtesan, a geisha

and from a dealer in silks; from an amazona of the steppes;

and a boyar; a vizier and a poet,

from a family of robbers in times long ago,

Australian sailors, lost in hell

for being people of the world, a parental world

then I come from various coincidences

to this reformed Lisbon; at Mouraria a cousin

another in the Quartier, a female cousin in Magreb

another in Moscow and yet another in the Congo

thousands in Brazil, my DNA is the world,

my cells are the universe.

I am a man born by women in verse.

In my veins lives a profound refugee

I ask where is the crib of my birth?

De Djaimilia Pereira de Almeida e da literatura pós-colonial

De Portugal, a cidadania dos mortos foi o seu único visto de residência. Da cidade de onde tinha vindo, e que em tempos se chamara Luanda, pouco restava depois do grande incêndio do tempo, continuava a ser muito longe.

Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda Lisboa Paraíso

Vamberto Freitas

Muitos escritores portugueses, no período que se seguiu à guerra colonial de Portugal em África, têm ficcionado as suas experiências nessas frentes de combate: nomeá-los todos aqui ocuparia um bom bocado de espaço que o jornal me reserva, como deve ser. Adianto só que essa literatura vem da autoria de escritores continentais e açorianos, em que o Outro, a maior das vezes são eles próprios disfarçados em narradores naturalmente fictícios. Existem também os que ficaram nesses países de língua portuguesa, e têm dado grandes provas de si, viajando, alguns deles, de continente em continente, quase sempre publicando os seus livros também em Portugal, e recebendo com toda a justiça a melhor das recepções por parte da crítica e ensaístas. Só que Djaimilia Pereira de Almeida tem, para mim, um outro estatuto: é um autora portuguesa, que muito cedo na sua vida veio para Portugal viver com família nos arredores da nossa capital, onde cresceu e eventualmente terminaria com sucesso um doutoramento na Universidade de Lisboa, precisamente, como já referi noutro texto, em Teoria da Literatura. A partir desse momento nunca mais deixou de publicar ficção que tem como temática a sua própria experiência, e muito particularmente a representação dos que, com ela, partilham esse destino ou de “exílio” ou de uma vivência-outra neste que é o seu e nosso país. Não a tenho lido na ordem do tempo em que saem as suas obras, o que é o caso aqui. Escrevi sobre o seu primeiro romance, esse cabelo (2015), seguindo com A Visão das Plantas (2019), que fiz sair há poucos dias, e regressei no tempo, na leitura e escrita, sobre esta outra grande peça de ficção, Luanda Lisboa Paraíso (2018), que foi para mim um ano de grande dor familiar, levando-me a colocar livros e outros trabalhos sobre a minha secretária sem sequer olhá-los atentamente. O tempo passa, e vamos todos “recuperando” ou aceitando as fatalidades da vida. Tudo isto só para dizer que levou algum tempo a chegar às páginas deste livro supremo, e das mais precisas linguagens que juntam a tragédia à comédia dos nossos dias, com um humor tão subtil que nunca deixa o leitor esquecer que está de frente para a condição humana numa outra versão, a arte nunca desligada do tempo e sociedade, ou sociedades. A narradora tem como tema predominante a vida de dois imigrantes, então ilegais, um pai de nome Cartola, que traz um dos seus filhos, com o nome simbólico de Aquiles, a Lisboa para que seja tratado de um tornozelo quase sem cura ou sem assistência especializada no seu próprio país, onde vivia em Moçamedes. Deixa atrás Glória, a sua mulher acamada, e outra filha, tentando agora procurar todas as soluções ao seu alcance, incluindo o trabalho nas obras e a vivência, quase até ao fim da história, numa miserável cabana numa zona perto de Lisboa chamada Paraíso, com toda a sua carga irónica. Vivem rodeados de pobres vindos da mesma origem, até que chega o galego com pouco mais do que eles, mas que abre um pequeno bar, que se torna o único refúgio da sujeira e falta de conforto total. Bem vindos a Portugal no seu pior, e sem a mínima simpatia por aqueles que um dia lutaram ora pela independência, ora ao lado da tropa portuguesa. Racismo nunca é mencionado, mas está subjacente a toda a narrativa. Os nossos “brandos costumes” tinham a ver com a cor das pessoas, e não com o seu carácter de seriedade (relembrando aqui Martin Luther King, JR.) e trabalho explorado mas honesto para as suas vítimas.

Naturalmente que não vou contar toda a história ou trama de Luanda Lisboa Paraíso, mas ficar pela sua perfeita estrutura que junta o presente ao passado em analepses de vária ordem, que incluem cartas de a para a mulher em Angola à espera de se concretizar a promessa de ela vir um dia ter com os seus a uma cidade que lhe era mítica e produto só da sua imaginação, com casas e ruas bonitas e um modo de vida que nada tinha a ver com a guerra civil em curso no seu país natal e pobreza quase absoluta. Não, o romance não é de queixas de um lado ou outro, só que o seu realismo tresanda em metáforas de como o mundo desigual, desde os seus primórdios permanece e, mesmo que aparentemente aceite, nada indica que vai mudar. Um país que tem escritores e escritoras deste calibre não é assim tão comum. Pouco tempo depois de hostilidades que levaram milhares à morte nos dois lados, temos pelo menos uma arte literária que, no caso de uma autora como esta, nunca leva à raiva ou a acusações directas ou sequer insinuadas. Uma vez mais, não se trata da aceitação dos que sofrem a sua condição de desprotegidos vindos de longe, simplesmente a uma prosa que se assemelha a uma pintura em silêncio para que cada um chegue à sua própria interpretação. Faz-me lembrar o momento prolongado num museu de Madrid quando olhei durante muito tempo o mais famoso quadro do século passado, a Guernica de Picasso. Cada traço uma sugestão, cada expressão, mesmo da cabeça de um cavalo em agonia silenciosa, a levar-nos a entender a nossa capacidade para a crueldade e injustiça. Luanda Lisboa Paraíso não é um quadro, mas uma representação genial de sociedades em guerras de várias naturezas nos anos 80, esse tempo que descambaria na nossa vivência actual: fechados e com medo da morte incerta mas sempre próxima. Já no fim do romance acontece duas tragédias o incêndio que acaba com a cabana de Cartola, e dá lugar à construção de uma casa mais ampla e limpa, e a morte acidental de um rapazinho de nome Iuri, por mãos próprias num acidente com granadas escondidas e por ele encontradas, e o consequente suicídio de Pepe . O romance termina, após todas as desgraças e má sorte num passo narrativo que reafirma a vida e a obrigação de continuar na sua nova existência.

“”Talvez, no final, apenas pudesse esperar que os seus companheiros de vindima não vissem chorar. Nem ele nem o pai – reafirma a narradora – tinham pago esse talhão com a entrega da sua felicidade, mas com a extinção amarga a que ninguém os obrigara, rendição que não se presumiria de nenhuma fotografia antiga, que não os envergonharia a eles nem aos seus descendentes. Tinham cedido a prazeres ínfimos, a pequenos nadas que, não se fazendo notar, renascem como uma força, uma vibração. Se pelo caminho deixaram cair partes de si mesmos sem olharem para trás, também não se sujariam. Se não foram felizes, não foram tristes, nem sequer mentira”.

Luanda Lisboa Paraíso vai também ficar num cânone literário nacional em dois países, o que para uma escritora portuguesa é um feito pouco comum. Melhor dito ainda, creio, que é uma grande da literatura portuguesa. O pós-modernismo também nos legou isso: dar a voz ao outro, que não a tinham, tal como outros escritores já afirmaram vezes sem fim sobre estas relativamente novas literaturas. Djaimilia Pereira de Almeida tem ainda publicado Ajudar a cair, entre outras obras e colaboração nas mais diversas e prestigiadas revistas literárias internacionais.

_____

Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda Lisboa Paraíso, Lisboa, Companhia Das Letras/Penguin Randmon House, 2018. No meu “BorderCrossings” nno Açoriano Oriental, 12 de Junho de 2020.

A existência de uma família numa Vila claustrofóbica

Tudo começara no dia em que ilha se deparou com a visão de uma armada estrangeira, a que se seguiu um insólito aparato, o desembarque de uma avalanche de militares, camiões surpreendentes, pilhas de madeira e chapas de metal, para além de uma enormidade de caixotes de conteúdo indeterminável.

Ana Ferraz da Rosa

Vamberto Freitas

Cheguei tardiamente a este romance de Ana Ferraz Da Rosa, A Cidade Sem Nome, porque foi publicado num dos anos mais problemáticos da minha vida, em que os livros se amontoavam sem o menor ânimo da minha parte. A Cidade Sem Nome tem como tema principal a vida numa “cidade” (então Vila) açoriana onde convivem os seus habitantes com estrangeiros “ocupantes” desde a II Guerra Mundial até quase aos nossos dias. É um romance de originalidade absoluta e ironia constante que representa uma outra visão de vidas singulares, mas de imediato reconhecidas por leitores em qualquer cidade de pouca extensão em Portugal, rodeada de mar ou de terra, ou até num outro país qualquer de longa e atribulada história. Esta é a segunda obra literária da autora, tendo ela publicado Crónica Das Visitas (2011), uma série de textos que tanto funcionam como contos, e quando interligados numa leitura sequencial, tornam-se num outro romance. Ana Ferraz Da Rosa tem já uma longa história de artista plástica e dança clássica, com formação em Portugal e no estrangeiro. Formada também pelo Departamento de Ciências da Educação da Universidade dos Açores, tem ainda feito parte de vários grupos criativos que se dedicam ao teatro e à dança, inclusive tendo sido Professora no Conservatório Regional dos Açores, entre outras actividades imparáveis nas mesmas áreas. Menciono aqui parte dos factos da sua vida profissional porque a literatura vem um pouco mais tarde, mas não perdemos nada pela espera. A ironia, de que já falei começa pelo próprio título do livro, pois em parte alguma a autora assim a denomina, antes Vila da Santa, Sabemos que as suas personagens estão todas, com algumas intermitências, numa ilha açoriana para os que conhecem o nosso arquipélago, o que ficará confirmado ao longo desta peça de ficção que se trata da Praia da Vitória e da Ilha Terceira. A sua trama traz-nos quase até ao presente, são os detalhes sobre estilos de vida e do progressivo desenvolvimento que vamos tomando conta desde o início que se trata da presença dos americanos, que fez dessa defesa da Vila da Santa um sítio diferente na ilha, um tanto cosmopolita. e ainda hoje, por outras razões, continua a viver a mesma condição, tal como acontece neste romance de Ana Ferraz Da Rosa em relação ao seu fundo geográfico e humano muito próprios. Inclui ainda a miserável condição de um bairro da lata ali mesmo ao lado, com todas as características habituais, miséria de alto grau e prostituição. A literatura portuguesa saída dos Açores esteve praticamente toda ligada à sua história e sorte geográfica, até com a menção do grande abalo, sem data nunca dita pela narradora quando enfrenta esses demolidores anos que atingiram toda a ilha, nalguns espaços mais do que noutros. De resto, A Vila da Santa, antes e mesmo e depois da chegada dos contingentes (que sabemos ser os americanos depois dos ingleses) é uma de tranquilidade e liberdade de crises, com o mexerique e a inveja a dominarem as conversas externas que chegam ao conhecimento da narradora, de preocupações desusadas por reputações familiares, em que um vestido acima do joelho traria logo as más línguas ao palco, neste que caso num Café, aqui é de nome Café Vitória, indicando que era então famoso, e em que todos “sabiam” de tudo no burgo, até se tornar há poucos anos numa fina espécie de pastelaria. Desde os negócios da família de Teotónio Maldonado, que vai enriquecendo vagarosamente até comprar um carro com distinção, com a sua mulher Mercês da Assunção a dedicar-se quase exclusivamente à orientação da casa, até aos filhos com vidas meio secretas e desafiadoras, domésticas namoradeiras e outros de origens fora da ilha, A Vila da Santa é uma festa de boca para todos. Cada leitor, como já referi, vai reconhecer-se nestes vaivéns e vidas quotidianas que ora são medíocres, ora dramáticas por acontecimentos inesperados, ninguém, nenhum de nós, para além do nosso estatuto social, se safa destes destinos.

A ironia em ficção raramente vem sem igual humor ou entre um dobrar de ombros, até que chegue a próxima cena em que o riso também vem sempre lado a lado com o choro. Todo o romance está salpicado de expressões corriqueiras em inglês, a influência de americanos por todos os lados a falar alto e com frequência já meio bêbados em estabelecimentos à beira mar, que, se não têm má cheiro, manifestam as atitudes cansadas dos seus donos que aproveitam os então escudos ou dólares de tropa deslocada e longe do seu país. Aliás, aparecem vários nomes americanos, uns mais importantes de alta patente, assim como de outros menos significativos. Foi através do exemplo das americanas, mais abertas ao mundo, em todos os sentidos, que apareciam em fatos de banho só de duas peças que provocou a mesma mudança e audácia de algumas naturais da ilha no largo areal. Por outro lado, o regresso de imigrantes, como a antiga empregada Marcionílda, que se torna uma personagem maior no romance, teve um filho do patrão, e enquanto a vida da Vila da Santa progredia um pouco para todos em toda a ilha. Não acho necessário aqui dar o nome de todas as personagens que dirigem a narrativa, ou então se quedam ao lado como meros observadores e bocas de elogio, falsidades ou pura mentira. A verdade é que são raros os romances que nos dão um retrato, por assim dizer, de pequenos ou grandes aglomerados de gente e seus convidados ou invasores pacíficos, e muito menos em pé de guerra. A Vila Da Santa nem se esquece da “cidade” ao lado, que era a base americana das Lajes, fonte de emprego ou então de certa elite que se vestia luxuosamente quando convidados para os seus bailes ou outros acontecimentos em que os civis privilegiados eram admitidos. O romance depressa se torna uma crónica de fôlego sobre pobreza, desigualdade e vaidades que, como todas as vaidades, se tornam cómicas sem nunca as suas criaturas se aperceberem disso. Neste caso, estamos perante uma família digna, que tem os seus momentos de dúvidas e desgostos, tudo que oscila entre a “verdade” imposta por outros ou por si próprios, mas acaba com a vida ainda bem vivida ou, no mínimo, tolerada. De namoros escondidos à participação local em bailes noite adentro, o namoro acontece sem escândalos ou dramas de ocasião. O ciúme entre uns e outros não falta. Por outras palavras, o realismo deste romance vira um perfeito símbolo das nossas vidas cercadas por mar, gente e catástrofes inesperadas, tal como a vivemos e continuaremos a viver num futuro sempre incerto.

“Clara, – diz o narrador/a do que pensava o pai da filha de um casal de bem e que domina a história do romance, tal como Mercès – a filha que Deus lhe dera, havia de quebrar aquela assombração do isolamento que esmagava a ilha. E, porque a cada momento um novo tempo se iniciava, era imprescindível quebrar, desde logo, a maior parte dos costumes que os seus antepassados tanto tinham prezado e Teotónio Maldonado nunca ultrapassara. Se os homens se faziam ao mar, a sua filha havia de atravessar uma outra ponte que, dissessem o que dissessem, começava mesmo ali ao lado, na Cidade Sem Nome… Mercês tinha também perfeita consciência de que nenhuma destas suas determinações poderia alguma vez ser revelada, ou sequer insinuada…”.

A Cidade Sem Nome é um desses romances que veio para ficar. As escritoras açorianas não recebem a atenção que merecem dos críticos mais atentos a tudo que se publica entre nós. Injustos? Talvez não, só que nunca se libertaram de uma sociedade que permanece ainda mais ou menos patriarcal. A boa notícia literária é que essas amarras, como no caso da citação que fiz sobre Mercês, estão a ser desfeitas com certa rapidez.

_____

Ana Ferraz Da Rosa, A Cidade Sem Nome, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2018.