Vamberto Freitas é uma avis rara. É um questionador. Numa terra estrangeira, por pura necessidade própria – prática e espiritual, e atrever-me-ia a dizer – ligou-se a um mundo que, tivesse querido ou não, herdou.
George Monteiro no prefácio ao meu ‘Jornal da Emigração – a L(USA)lândia reinventada’
Vamberto Freitas
Vivi quase três décadas na América do Norte, e posso dizer que muito por lá viajei, desde a grande área de Los Angeles por toda a parte. A minha corrida preferida ia dessa área até à minha família no Vale São Joaquim, a três horas e meia de carro a alta velocidade numa mítica auto-estrada chamada 99. Entretanto, num ano em que já não me lembro atravessei o Deserto Mojave até ao Grand Canyon na companhia de Onésimo T. Almeida e de outro amigo comum, que tinha vivido no Canadá e foi membro dos seus nadadores olímpicos, o que me trouxe prazeres e descontamentos durante quase toda a viagem. Parávamos a meia viagem e eles os dois mergulhavam numa piscina de hotel, e nem eu sabia nadar, limitava-me a ler jornais e a beber cerveja, disfarçando as minha inabilidades da melhor maneira que me ocorria no momento. Chegámos a Las Vegas, que ainda hoje detesto pelas suas luzes exageradas e os seus casinos mafiosos. De qualquer modo, sobrevivi, quase já sem dinheiro algum, gasto nos bares e naquelas máquinas de roubo puro. Cheguei a casa são e salvo, jurando que nunca mais, com ou sem amigos queridos como estes. Estamos nessa altura nos anos 80, e escrevi um artigo publicado em São Miguel com o título “Com Onésimo T. Almeida na lUSAlândia e em toda a parte”. Essa peça jornalística foi escrita já depois de eu ter regressado definitivamente aos Açores. Bom, no fim dos anos 80, nos Encontros Literários da Maia (hoje já míticos entre as novas gerações) , o que deu lugar a visitas suas à Califórnia, e acabariam por uma viagem de carro de uma ponta da América no Oeste até à outra na Costa Leste, onde embarquei o meu carro e seguimos de viagem até às ilhas.
“Mississippi, localizado no coração geográfico e cultural do sul, – escrevi noutra parte e há muitos anos – é o paradigma fundamental de toda a tragédia humana e histórica naquela parte do país americano. É, ao mesmo tempo, um dos mais pobres e ricos estados da União. O seu estatuto – real e psicológico – de periferia autêntica fá-lo combinar a dor do seu passado com o triunfo que daí provém – uma poderosa e talvez inigualável literatura dos nossos dias. Para além de Faulkner, é a terra de todo um grupo de escritores que também viriam a tornar-se conhecidos, alguns deles, em todo o mundo letrado – Eudora Welty, Tennessee Williams, Walker Percy, E. Spencer, Richard Wright e William Morris, só para falar dos mais famosos”.
Entre muitas outras cidades do interior e da costa atlântica fomos à Carolina do Norte prestar homenagem a Thomas Wolfe, que faleceu em 1938. Uma vez mais, visitámos a sua Casa-Museu e cemitério assim como a sua universidade de Chapel Hill. Tenho nas minhas estantes pedrinhas e terra da sua cidade, assim como uma reprodução do exterior da sua casa de nascença e um quadro com seu o perfil oferecido por uma antiga colega e amiga da Cerritos High School, onde dei aulas durante 14 anos. Thomas Wolfe, como me diria um dia o meu falecido e jubilado amigo George Monteiro, da Brown University, foi um romântico modernista, passe a contradição associada em mim para sempre a um génio da literatura, mesmo que hoje esquecido pela academia. Tem dois romances, entre toda uma numerosa, gigantesca obra, que ainda hoje me comovem: Look Homeward Angel e You Can’t Go Home Again. De resto, foram outros estados de conhecidos escritores ao longo do grande país. Visitámos Washgington, D.C. mais por obrigação de dois cidadãos americanos do que pela curiosidade. A parte da Casa Branca em que podem entrar turistas não me deixou a mínima lembrança ou saudade. A paisagem de quase todos os estados americanos é, no entanto, deslumbrante. Cheguei a ir à capital com a Adelaide a um congresso sobre literatura americana. A mesma impressão. Nada mais, sair de lá foi um alívio, rumo finalmente às casas dos nossos amigos e imigrantes e luso-americanos em Rhode Island e Massachusetts. Esta, sim, é a minha América.
Pouco depois de regressar aos Açores, viajei por vários países europeus: Holanda, Reino Unido, Irlanda, Isle of Man, Áustria, Bélgica, República Checa, Hungria e Alemanha. Para ser absolutamente honesto, já não tenho a suficiente paciência para mais museus, catedrais e arqitectura, mesmo que nunca tenha ido à Itália ou à França. Já não sinto qualquer necessidade de sofrer aeroportos gigantescos e confusos. Gostava de ver a Rússia, mas sem grandes pressas caso os deuses sejam benevolentes para comigo. Que trouxe destes países? Bom, alguma coisa, mas como um dia disse a um grande amigo quando deixei os EUA, agora não me lembro de nada que me tenha tocado profundamente. Muito mais do que cerebral, acho eu, sou emotivo, e a “frieza” humana e climática do norte pouco me diz. Também estive várias vezes no Canadá, uma delas em pleno inverno, mas gostei. Fez-me lembrar o outro lado da fronteira a sul, e aí, sim, senti-me em casa. Toronto não me disse muito, mas disseram-me com carinho e amizade os contactos privados e várias casas de gente conhecida e outras situações. No México conheci um povo maravilhoso, educado, e com uma grande curiosidade sobre o meu país. Diziam-me, naturalmente em espanhol e com admiração, és do “país dos cravos”. Foi no ano de 1975. Nunca mais os esqueço ou deixarei de ter saudades deles.
Guardei para o fim a minha viagem a Florianópolis (Santa Catarina) e a Porto Alegre, no Brasil, quando fomos participar em encontros literários e culturais denominados “Travessias”, convidados por colegas daquela parte do mundo. Foram dias e momentos que serão sempre inesquecíveis. Por isso vou reproduzir aqui esses momentos através de um texto que escrevi em 2005, intitulado “Sobre Travessias no Brasil”: Foi muito noticiada no arquipélago a ida de um grupo de escritores açorianos a esse primeiro encontro intitulado, repito. Travessias: Encontro de Escritores Atlânticos – Açores-Brasil em Florianópolis e Porto Alegre, esses berços históricos com mais de 250 anos da nossa presença naquela parte do Brasil. Não podia deixar de adiantar aqui algumas outras ideias e informação, apesar de a nossa Imprensa já ter publicado alguns artigos vindos do Brasil sobre a génese e o desenvolvimento de Travessias, que continuarão nos próximos anos, se houver a mesma boa vontade e valorização dos patrocinadores, especialmente por parte do Governo Regional dos Açores. É claro que durante muitos anos e nas mais variadas situações, toda a diáspora açoriana tem comunicado entre si, mas agora é a Cultura directa e activamente partilhada por todo o nosso povo nesse outro e vasto Triângulo Açoriano transnacional (Ilhas/Continente, Brasil e América do Norte); que começa a desenhar-se com o povoamento das Ilhas e se estende vigorosamente até aos nossos dias de e/imigração e consolidação em geografias reais e de afectos indeléveis. Pessoalmente, eu tinha a experiência de imigrante nos Estados Unidos, e conhecia a nossa presença no Brasil através de livros e dos contactos durante anos com grandes amigos e colegas. Nada me tinha preparado (nem a outros da nossa comitiva) para o que encontraríamos no Brasil “açoriano”, não só nas duas cidades do referido Encontro, mas também noutras como Pântano do Sul na Ilha de Santa Catarina), e depois Rio Pardo (cidade agro-pecuária, “a última fronteira ou bastião onde chegaram os açorianos ao continente do sul”).
Sangue do nosso sangue, o seu imaginário açoriano permaneceu ao longo de dois séculos e meio vivíssimo e na plenitude de uma memória colectiva hoje perpetuada e experienciada diariamente nos seus comportamentos, nas suas “saudades”e na monumentalidade visível das cidades que fundaram, e que outros das mais variadas nacionalidades lá fixadas reconhecem como um direito histórico por todos a ser respeitado e acarinhado. Desde de nomes de instituições de vária natureza, nomes de ruas e de edifícios até à culinária e literatura, um punhado de “casais” que nos deixaram a meados do século XVIII e seguiram o então reduzido exército da Coroa ocupariam o território e fundariam o muito que de bom e original tem desde sempre a grande Nação Brasileira.
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A última e outras partes deste texto foram tiradas de outros escritos logo depois destes dos meus andamentos no mundo, muito especiais para mim. Uma longa página deste ensaio vai ser publicada, em conjunto com outros autores, no livro Viagens das Letras Lavadas, aqui de Ponta Delgada. A foto é de Ashivlle, North Carolina, a terra de nascença de Thomas Wolfe.