Uma intelectual africana na América: raça e amor

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Todos nós temos o nosso momento de iniciação à Sociedade de Ex-Negros. A minha foi numa aula da faculdade, quando me pediram que apresentasse a perspectiva de uma negra, só que eu não fazia ideia do que isso fosse.

Chimamanda Ngozi Adichie, Americanah

                                                                                 Vamberto Freitas

Americanah é um romance que possivelmente intimidará alguns leitores (com as suas setecentas e doze páginas na tradução portuguesa) neste que é o tempo de mensagens curtas e palavras abreviadas em textos monossilábicos e partilhados instantaneamente. Ninguém se arrepende de não ter desfrutado do que não conhece, e bem sei que as nossas escolhas literárias são abundantes, cada qual justificada pelos mais variados interesses, gostos, ou ainda as obrigações profissionais de cada um de nós. Nascida em 1977 na Nigéria, Chimamanda Ngozi Adichie tem como tema principal a sua experiência de vida entre os seus, e depois a sua chegada e residência nos EUA dos nossos dias. A América precisava de uma voz assim: penetrante ante as suas virtudes duradouras e mitos, e sobretudo ante as suas hipocrisias ou contradições. Chimamanda Ngozi Adichie, escritora negra ou africana? Escritora, sem mais, grande escritora. É dignificante para nós todos ver uma autora de tal calibre olhar de frente e sem complexos as relações humanas num outro mundo que já está aí, renasce diariamente, provocando-nos as mais inesperadas vertigens de pensamento, medos, mas também a felicidade de não sermos estrangeiros em parte alguma, mesmo que certas forças políticas e económicas traiam o melhor da humanidade, tentem uma nova escravidão por via de ideias e ideologias ressuscitadas para justificação do roubo constante, para cimentar o domínio de novas elites sobre todos os outros. Americanah, diga-se, não entra por aqui, é arte literária como já só raramente acontece, mas entro eu – raça e racismo são vistos nestas páginas com ironia e humor, a protagonista de nome Ifemelu movendo-se de cabeça erguida entre os que eventualmente a olham ou a olhariam de lado, entre os seus pares, quer de raça ou etnia, quer nos meios intelectualizados que ela frequenta, ou sofre.

Desde há muito que alguma da melhor literatura em língua inglesa vem das ex-colónias do Ocidente, a literatura criada pelos que eram olhados como escravos, ou, pior ainda, como sub-seres humanos, antes mesmo de Salman Rushdie, mas por este e pelas novas gerações consolidada. A riqueza de qualquer língua vem pela sua abertura a todas as culturas do mundo, vem precisamente da osmose com outras línguas, mesmo as que estão reduzidas a pequenos, marginalizados ou esquecidos grupos espalhados pelo nosso globo. Não será só o enriquecimento vocabular, será sobretudo a sintaxe inovadora só permitida pela “interferência” positva de outros idiomas e das visões do mundo que delas partem, sobressaindo em primeiro plano não as diferenças mas, sim, a universalidade do coração humano, dos seus desejos, dos seus medos, dos seus sonhos. A construção formal deste romance tanto tem de narrativa linear tradicional como se rege pelos novos meios de viagens transfronteiriças e pelas comunicações instantâneas a que estamos todos sujeitos. Cada personagem é vista no seu meio ambiente natal, e observada e comentada de igual modo quando se torna o Outro no processo de assimilação de novos modos de estar, pensar e falar. Quando se responde pela arte pura aos antigos impérios e aos seus discursos enviesados pela ignorância ou maldade generalizada, só das margens parte a humanização de nós todos – não são gritos de acusação estes quadros literários, são quase sussurros amigáveis, ora cómicos ora de seriedade, de auto-contemplação, a reivindicação de uma voz própria a que qualquer indivíduo ou grupo tem direito. A autora não se refugia na vida e estatuto privilegiado da classe média nigeriana de onde é originária, não ignora o outro lado da fronteira entre cidade, vila ou mato – descreve-os como sendo parte do seu ser, da sua dor, da sua fatalidade. O amor aqui não tem cor ou etnia – tem desejo, tem alma, tem dor, tem felicidade, tem certezas e tem enganos. Ifemelu não aceita que lhe digam que ela é diferente dos seus por ser linda e bem formada, por ter projectos de vida em tudo iguais aos de outros americanos – ri-se quando pretendem que não a olham como ela é, agora num país em que, afirma a narradora a dada altura, há cinquenta anos faria Barack Obama sentar-se na parte de trás do autocarro, ou ainda hoje para na estrada ou numa rua de bairro um cidadão por simplesmente este ser preto. Ifemelu nada cobra a ninguém, mas não se deixa enganar pela hipocrisia dos que fazem por não ver a cor da sua pele, o sotaque do seu linguarejar, o arranjo do seu cabelo – espera respeito pela diferença, ou então melhor será não ouvir o que da sua boca poderá sair serenamente. Ifemelu não é perfeita no seu modo de vida, nem nos seus sentimentos – é humana, e só isso, em busca do seu lugar na sociedade, dos seus prazeres, do amor na e fora da cama, ou pelos seus mais chegados. Em suma, Ifemelu somos nós todos. A grande literatura, como escreveu num dos seus livros o crítico Harold Bloom, a literatura de génio, é também aquela que pensamos ser sobre nós mesmos, não lemos sobre uma personagem fictícia — lemo-nos. O romance movimenta-se entre a Nigéria, América e Londres. A protagonista, como parte da estrutura do romance, cria um blogue intitulado deliciosamente “Compreender a América para o Negro Não Americano”, onde disserta, provoca e responde sobre a questão racial naquele país, tudo visto por uma mulher que só se torna consciente da cor da sua pele, da sua “diferença”, numa sociedade para quem a cor dos seres humanos foi historicamente decisiva, a todos os níveis e em todas circunstâncias sócio-políticas e culturais.

“Os americanos – escreve Ifemelu numa entrada denominada ‘Tribalismo Americano’, depois de afirmar que na América contemporânea o tribalismo está vivo e de saúde – partem do princípio de que toda a gente compreende o seu tribalismo. Mas demora algum tempo a apreender tudo. Por isso na faculdade tivemos a visita de um palestrante, e uma colega da turma segredou a outra ‘Oh, meu Deus, ele parece tão judeu!’ com um estremecimento, um estremecimento de facto. Como se ser judeu fosse uma coisa má. Não percebi. Tanto quanto eu via, o homem era branco, não muito diferente da própria colega da turma. Judeu, para mim, era algo vago, algo bíblico. Mas aprendi rapidamente. Sabem, na escala de raças da América, judeu é branco, mas também alguns degraus abaixo de branco. Um pouco confuso…”

De resto, Americanah (nome que os nigerianos a chamam depois do seu regresso ao país natal) é muito mais do que tudo isto, tem dentro de si alguns dos temas principais da grande literatura desde sempre, a vida em família e entre amantes, a busca, forçada pelas circunstâncias de se estar numa sociedade que não a sua, de identidade, e sobretudo distingue-se pelo que Edmund Wilson um dia disse ser os “valores comparados/comparative values”, que devem guiar toda a escrita artística que se debruça sobre a condição humana num dado tempo e lugar. Algumas das passagens mais hilariantes deste romance acontecem na tentativa de Ifemelu perceber a natureza dos relacionamentos amorosos – com o antigo namorado que deixa no seu país quando parte para o outro lado Atlântico, com um anglo-saxónico vindo da tradição patrícia e se apaixona por ela durante algum tempo, quando vive com um professor afro-americano da Universidade de Yale. Ifemelu resiste a tudo, mas não à força das raízes. Anos depois de ter conquistado um lugar de conforto para si naquela sociedade, decide regressar à terra natal. Pode-se voltar a casa? Pode-se, mas nem ela nem nós seremos já os mesmos. A saudade vira agora ao contrário, os defeitos e virtudes, a divisão entre todos permanece, toma outras formas, os que têm e não têm, os que mandam e os que são mandados.

Americanah, pois, é sobre uma africana nossa contemporânea. Vezes sem fim, no entanto, apanhei-me a sublinhar certos passos, com um sorriso na cara: tal qual entre nós portugueses de ida e volta, pensava eu, quase as mesmas linguagens acertadas e desacertadas sobre um país e o outro. Mesmo que não se desse este meu choque de reconhecimento, estive perante um dos maiores romances dos nossos dias. Vale por si, experiência e saber dos leitores à parte. Entendo agora a razão que levou o New York Times a escolhe-lo como um dos melhores romances de 2013 nos EUA, e a receber o Chicago Tribune Heartland Prize. Este é o seu terceiro livro, tendo publicado antes ACor do Híbisco (2005) e Meio Sol Amarelo (2007), ambos também largamente premiados.

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Chimamanda Ngozi Adichie, Americanah (tradução de Ana Saldanha), Lisboa, D. Quixote, 2013.Li a versão original em inglês, mas as traduções aqui foram tiradas da edição portuguesa.

 

 

 

Noam Chomsky em conversa subversiva, sempre

 

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Numa sociedade democrática, na medida em que é uma sociedade democrática, o governo somos nós. São as nossas decisões. Mas o governo aqui é descrito como algo que está a atacar-nos, não como um instrumento para fazer o que decidirmos.

Noam Chomsky, Mudar o Mundo

                                                                       Vamberto Freitas

Para mim, ler este recente livro de Noam Chomsky, Mudar o Mundo, que foi pulicado o ano passado nos Estados Unidos, e acaba de ser traduzido no nosso país, é como que sair à rua de uma casa fechada e infernal, respirar o ar fresco e sentir uma brisa de vida que promete levar consigo toda a nossa apatia e amordaçamento generalizado de corpo e alma. Um neo-fascismo, que a maioria de nós insiste em chamar de neo-liberalismo, subvertendo assim toda a linguagem para corromper em absoluto a realidade e o pensamento livre dos cidadãos, como nos avisou George Orwell, é a nova ideologia que tomou conta de quase todas as sociedades do Ocidente, e não só. Franklin D. Roosevelt diria um dia, quando a sua América se encontrava no fundo de poço lamacento a princípio dos anos 30, que quando um governo está dependente de uma única instituição financeira privada será, ipso facto, um governo fascista ou fascizante. Bem sabia ele quem tinha provocado a queda do seu país, e quem lucrava com a miséria de um povo deprimido, em todos os sentidos, e reduzido à miséria dos famosos acampamentos dos desabrigados em todo o território (de que John Steinbeck daria conta no seu magistral As Vinhas da Ira), ou tremendo de frio em filas intermináveis para uma sopa dos pobres bem no coração de Nova Iorque e de quase todas as grandes cidades do seu país. Ler Noam Chomsky sobre as nossas sociedades e sobre outras abordadas nestas páginas em forma de uma longa entrevista com um seu ex-aluno e simpatizante de nome David Barsman, é sermos lembrados de que o que nos está a acontecer, a nós portugueses, de alguns anos a esta parte, estará, mais cedo ou mais tarde, a acontecer a quase todos os outros, pois o regresso descarado do projecto para uma nova escravatura é global, um mundo totalmente governadopor “investidores” anónimos e bancos de todo vampirescos, esquecendo as populações mais indefesas e sugando o que resta da vida dos que ainda conseguem produzir alguma coisa à pequena e média escala, ou, como último recurso, “vender” o seu trabalho a preço mínimo. Há um conforto perverso em ler Noam Chomsky: ninguém está só, todos enfrentam o mesmo mundo reformulado conforme os interesses de minorias poderosas, pelo que a resistência ou é internacional, ou nenhum país sairá do pântano que para si criou e lhe foi criada, a suposta “saída” só quando os novos poderes financeiros permitirem. Aliás, quando lemos Noam Chomsky sobre os EUA – o movimento norte-americano Occupy significa muito, e há esperanças que não baixe os braços nem tenha medo algum dos seus algozes de fato e gravata e de pasta na mão, ali lado em Wall Street — e os caminhos escolhidos pelos novos usurpadores (as urnas não justificam a mentira, ou certas ideologias disfarçadas pelo nova linguagem) da nossa vida política e económica nestes últimos anos, quase esquecemos que não estamos a ler sobre Portugal, ou sobre qualquer um dos países que já sucumbiram.

Mudar o Mundo (lembrando deliberadamente o conhecido dito de Karl Marx de que os filósofos se haviam limitado a interpretá-lo durante toda a história, mas era agora necessário agir) está organizado em oito capítulos, começando com “O novo imperialismo norte-americano” e terminando com “Aristocratas e democratas”. Nenhum leitor esquecerá que estamos perante um homem declaradamente da esquerda independente e não-sectária, alicerçado simultaneamente em leituras intermináveis tanto do passado como do presente, constantes visitas e experiências nos mais diversos países e regimes do mundo, e ninguém esquecerá que se trata de um dos mais distintos e consequentes linguistas do nosso tempo, que ainda hoje, com mais de 80 anos de idade, se mantém activo tanto nas salas de aula do prestigiado MIT (Massachusetts) como em constantes conferências de cariz político por todo o país e, uma vez mais, no estrangeiro. O seu entrevistado leva-o aqui a algumas páginas sobre o seu trabalho académico, mas o resto são as suas análises e reacções ao mundo contemporâneo, particularmente a partir de meados dos anos 60 e da guerra do Vietname. Fala de todos, americanos e outros, como se a sua vida estivesse dependente de qualquer decisão feita no mais recôndito lugarejo do mundo, se como a sua cidadania não tivesse passaporte ou fronteira. Se conhece muito bem a tradição judaica das suas origens, é para a subverter e falar de Israel tal como fala de qualquer país, pequeno e dependente da vontade dos grandes impérios do nosso tempo. Para Chomsky, a meu ver com toda a razão, deveremos falar, na maioria dos casos, em “protectorados” mais do que em “estados” soberanos. Se a queda do Muro de Berlim acabou com a guerra fria, a hegemonia de uns sobre todos os outros continua e aperta os laços ao pescoço de quase todos. O que se passa na Europa, para ele, não é novidade alguma, está dentro do caminho escolhido pelos novos donos da Terra, escondidos em linguagens perversas, corruptas e mentirosas. Chomsky, no entanto, nunca advoga outra acção que não a do diálogo, quando possível, e de denúncia quando necessária, as manifestações de rua essenciais à mensagem que de outro modo nunca será ouvida pelos que mandam e controlam. Como cidadão português e americano, não tenho rigorosamente nada a opor às suas ideias e propostas.

“Neste momento, – vira Noam Chomsky a sua atenção para o continente a leste de nós, comparando algumas das suas políticas com muito do que se passa no seu próprio país – assistimos a uma dinâmica levada a cabo de uma forma dramática na Europa, onde os bancos e os burocratas têm vindo a impor uma política de austeridade sob estagnação, o que quase de certeza piorá a situação e tornará mais difícil pagar dívidas. Têm sido duramente criticados por economistas, até pela imprensa económica, mas continuam a insistir na austeridade. É difícil encontrar uma fundamentação em termos económicos. Na verdade, penso que é impossível. Mas pode encontrar-se uma fundamentação. Na verdade, essa foi mais ou menos declarada pelo presidente do Banco Central Europeu, Mário Draghi, numa entrevista que deu ao Wall Street Journal e na qual afirmou que o contrato social na Europa está acabado. Por outras palavras, eles estão a aniquilá-lo”.

É claro que entre nós, as declarações públicas são precisamente o contrário, fazendo lembrar a estratégia dos Estados Unidos na guerra do Vietname, quando um dos seus generais declarou, nessa linguagem orwelliana que então começava a dominar o discurso das grandes potências, as mesmas que ainda controlam o destino da humanidade, que era “necessário” destruir algumas aldeias de um povo subjugado, para depois salvá-las, tal como ouvimos os nossos governantes dizer todos os dias que os cortes decisivos e destrutivos nos três principais sectores do Estado – Saúde, Educação e Segurança Social – são absolutamente essenciais à sua sobrevivência. De resto, Chomsky analisa ainda muitas das guerras em curso, relembrando que algumas delas, como se sabe, já têm também a ver com o acesso aos recursos naturais de zona global, e que ele prevê irem agudizar-se sob o regresso do sistema capitalista selvagem que domina praticamente em toda a parte. Surpreendentemente, para mim, pois trata-se de um país do qual raramente ouvimos alguma coisa, dado a sua aparente estabilidade e prosperidade, o Canadá é aqui mencionado de passagem, mas em termos que não poderemos esquecer. Depois de afirmar que o país a norte no seu continente está a tornar-se rapidamente num mero “protectorado” dos Estados Unidos (tal como somos e permaneceremos um protectorado da União Europeia, sem soberania integral ou poder de decisão independente), aponta os crescentes conflitos em volta das riquezas mineiras, por enquanto latentes ou fora das vistas do grande público, e insinua que podem tomar outra feição tal como estão a tomar já na América Latina e na Índia. É de um mundo tenebroso que nos fala Noam Chomsky — e durante décadas este proeminente intelectual público tem, infelizmente para nós todos, acertado.

Mudar o Mundo (re)apresenta-nos a uma voz “radical”, vinda do coração de um dos nossos impérios dominantes? Sim. A situação que vivemos na União Europeia, e muitos outros povos no mundo actual, perversamente repensado e reformulado, querendo construir e impor um futuro regresso reaccionário ao passado não é também “radical”?

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Noam Chomsky, Mudar o Mundo: Noam Chomsky e David Barsamian Analisam as Grandes Questões do Século XXI, Lisboa, Bertrand Editora, 2014.

 

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Ligando o destino do seu país de adoção ao seu próprio destino, pensa: “Fomos desfeitos pelas nossas próprias mentiras”.

Richard Zimler, A Sentinela

                                                                            Vamberto Freitas

Que Richard Zimler é um grande escritor dos nossos tempos, muitos outros já o escreveram a nível internacional, particularmente no mundo letrado anglo-saxónico, de onde o americano-português (é a expressão que me ocorre aqui para o diferenciar de luso-americano, que nos leva a outra etnia na sua América do Norte) é originário, tendo nascido em Nova Iorque e vivido no norte Califórnia boa parte da sua vida, onde também se formou em jornalismo antes de vir para Portugal em 1990, passando a leccionar na área da sua especialidade e traduzindo muitos dos nossos escritores, enquanto cria uma das mais brilhantes obras ficcionais contemporâneas. Judeu de nascença, boa parte da sua escrita ocupa-se precisamente da temática infindável que tem sido o destino histórico do grande povo diaspórico. Um dia, os seus antepassados foram expulsos do nosso país, e com eles, dizem alguns historiadores, foi-se a nossa grandeza. Em boa hora, para nós, o autor “regressou” a este território, que passou a ser uma outra geografia dos seus afectos e destino. Dois dos seus romances mais recentes, depois do que creio ser, até ao momento, o seu magnum opus, O Último Cabalista de Lisboa (1996, na tradução portuguesa), têm versado temas da nossa actualidade: Ilha Teresa (2011), que tem como protagonista uma jovem portuguesa a tentar reinventar-se em Nova Iorque nos dias que correm, e agora A Sentinela (The Night Watchman), publicado há uns meses entre nós. Trata-se de um “policial”, mas é muito mais do que isso, tal como sempre foram os romances de Raymond Chandler ou, na nossa língua, os de Rubem Fonseca. Creio ser esta a sua primeira incursão no género, e não perdemos pela demora – eis Portugal aqui em todo o seu esplendor da crise que atravessa e do governo que tem à sua frente, eis aqui Portugal em 2012, apenas um ano depois do colapso quase total, em que ainda estará mergulhado por muito tempo. Por detrás de um crime, a “revelação” imaginada de que a sociedade é governada e sugada pelos seus políticos e pelas suas elites empresariais, em que nem se salvam de suspeitas a própria polícia judiciária pela cobertura que dão aos mais poderosos, a quem o autor agradece numa nota prévia por lhe terem dado informações sobre a natureza do seu trabalho, que de outro modo poucos de nós conheceríamos.

O protagonista-narrador de A Sentinela é também uma outra originalidade na nossa literatura (digo nossa porque é mesmo, a trans-nacionalidade literária já sendo um facto crescente entre alguns dos melhores escritores mundiais), de nome Henry/Henrique Monroe, investigador da Polícia Judiciária em Lisboa, falando um português ainda com forte interferência da sua língua natal, nascido num rancho em Colorado, de pai americano e mãe portuguesa, Ana Maria Machado, que tinha ido para os EUA como estudante universitária, e por lá ficou depois de se apaixonar e casar. Para além de toda a temática já enunciada nestas linhas, o romance aborda directamente as questões da identidade pessoal e nacional não só de Henrique (a mulher com quem casa e tem dois filhos em Portugal é cá nascida, filha de emigrantes judeus argentinos, refugiados da ditadura que reinou naquele país durante anos 70-80), mas também do seu irmão mais novo, Ernie, que vive no Alentejo sozinho perto de Évora numa pequena quinta sua, assim como dos filhos que cá nasceram enfrentando em casa um misto de culturas e línguas, as suas referências locais e imediatas salpicadas pelas memórias do pai e do seu atribulado passado. As crises aqui são tão exteriores como interiores, cada um tentando definir o seu lugar e rumo debaixo de sombras psicológicas que estão sempre presentes e determinam a sua felicidade, e ainda mais a sua infelicidade, dúvidas, amores e raivas. Vindos — Henrique e Ernie — de um passado familiar obscuro mas que sabemos de abusos e violências extremas, nunca directamente relatadas ao leitor, de um pai cronicamente alcoólico, que reduziu a sua esposa portuguesa ao nada e eventualmente ao suicídio, a morte nunca deixa de rondar aqui ante aqueles que dão tudo por tudo para conseguirem a paz possível, dando assim à geração seguinte uma vida e um mundo um pouco mais decente e tranquilo. A grande ficção tem quase sempre este referencial – o indivíduo e a família como palco principal do rumo em direcção ao futuro ou ao nada, a sociedade, toda ela, indiferente ou então em espasmos colectivos decisivos, como é o caso do tempo ficcional destas páginas. A Sentinela é um romance de crime sem castigo – a mortífera violência física e psicológica nada mais é do que um quotidiano de corrupção generalizada e da ausência de referências “morais” ou humanistas no bravo novo mundo que criámos, ou deixámos que criassem para nós todos. Digo nós todos – sabemos que a melhor arte é aquela em cada um se vê e revê nas suas representações miméticas, imaginadas pelo artista ou pelo escritor. Como agente policial ao mais alto nível no nosso país, Henrique tanto medita sobre a natureza das suas funções e vocação, como sobre o seu lugar no grande esquema das coisas. Nada, aqui, é o que parece, nem perante o espectáculo dos outros, nem perante nós próprios. O narrador sofre – ou desfruta – de um duplo dentro de si, a quem dá o nome de Gabriel, o outro lado da sua personalidade especialmente em transe durante as piores crises pessoais e profissionais, é a voz contraditória à sua pessoa “real”. Cada personagem maior poderá ser como que um heterónimo do narrador. Se ele persegue a violência, a criminalidade e os roubos dos outros, nunca tem a certeza de que o seu sentimento de “justiça” seja justificado inteiramente. A memória viva do pai americano e a sua ambiguidade ante o que poderia ter sido um ajuste de contas com ele pelo que fez à mãe, a si, e especialmente ao seu irmão, que agora também vive isolado entre as árvores, hortas e pintura em busca de um tempo futuro e na luta contra os seus muitos demónios.

“Num momento de maior tranquilidade, talvez possa até admitir – diz o narrador durante a sua recuperação de dois tiros vingativos que levou numa rua lisboeta numa tentativa de o calar ou matar durante a investigação de um caso de homicídio, corrupção política e empresarial e pedófila nos mais altos escalões da sociedade, pensando na esposa durante um fluxo de consciência – que estou longe de ter acabado a minha busca de justiça, ainda que tenha dito o contrário a toda a gente, mas que ela tomará outra forma se quiser continuar a ser a pessoa que quero ser; poderei mesmo arriscar-me a parecer idiota e dizer-lhe que estamos sempre a flutuar sobre as cidades e os campos dentro de nós, aproveitando os ventos interiores mais imperceptíveis por cima dos telhados e escadarias e parques e canyons, em Portugal e na América e na Argentina e em qualquer outra parte, mesmo quando estamos certos de não termos forças para nos levantarmos de uma cama de hospital”.

Chegado aqui, verifico que não dei ao leitor qualquer pormenor sobre os crimes em investigação, e menos darei o seu desfecho, pouco habitual num romance deste género, no qual a justiça é feita e não-feita, numa contradição perfeitamente condizente com a humanidade de Henrique Monroe, com as suas dúvidas e preocupações éticas. A riqueza desta prosa de Richard Zimler, para mim, está muito para além da sua trama labiríntica, que avança num espiral de mentiras e violência, sofrimento e maldade diabólica. Mesmo assim, nada que não tenhamos lido nas primeiras páginas dos jornais durante este últimos anos de raiva existencial e sentido de derrota ante as monstruosidades que nos cercam e minam as nossas forças quotidianas. O que mais me comove neste romance é a presença de mundos geográfica e culturalmente distantes, mas interligados não pelas grandes questões do nosso tempo – que são mais ou menos semelhantes na maioria das sociedades – mas, sim, pela existência única de cada personagem, pontes simbólicas que são todos eles entre um extremo e outro de dois continentes, as serras verdes e o frio de Colorado (mencionado aqui vezes sem fim) simultaneamente em contraponto e em consonância com o calor e o mar azul de Portugal. Não existe outro escritor entre nós que possa tecer genialmente uma tal representação artística, de todo universalizada enquanto nos desenrola um novelo demasiado doméstico e coloridamente muito português. O olhar que lança aos pormenores mais escondidos das nossas vidas e ambiente circundante requer este outro, distante e próximo, partindo de referenciais mútuos e ao mesmo tempo antagónicos que cada cultura, a americana e a portuguesa, contém em si.

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Richard Zimler, A Sentinela (tradução de José Lima), Porto, Porto Editora, 2013.

 

 

A existência do nada e a memória de tudo

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Escrever é espreitar outras vidas. É contar mentiras e acreditar que isso é verdade.

Dulce Maria Cardoso, tudo são histórias de amor

                                                                       Vamberto Freitas

 No conto e escrita-outra desta singular colectânea, tudo são histórias de amor, de Dulce Maria Cardoso, a narradora (que noutros textos aqui por vezes assume uma voz masculina) diz “Que todos existimos sozinhos e que eu tinha de aprender a ser feliz sozinha e quanto mais cedo melhor”. Cada um de nós, sabemos, define o amor à sua maneira ou consoante os seus mais escondidos desejos e momentos de vida. Dizem-me que alguns críticos se queixaram de que, afinal, estas são narrativas que negam o seu próprio título. Também é sabido que a cultura literária portuguesa só muito raramente tem sido irónica, e Eça de Queirós não só foi e é o nosso romancista genial – afirma Harold Bloom num dos seus livros mais recentes entre nós – como vai longe no tempo e na sua própria condição de estrangeirado sem complexos. Fica-nos, mais perto de nós, José Saramago cuja obra enreda-se em volta de todas as suas dúvidas sobre a vida, reapresentando quase sempre aos seus leitores a mítica e a “evidência das coisas não-visíveis” em que ele pretendia não acreditar, mas que o inquietavam solenemente e levaram-no à mais consequente arte dos nossos dias, em que a forma e o pensamento se juntavam até à perfeição representativa da nossa sociedade, quer no longínquo passado quer no seu tempo – Deus, História, Dialécica, Nação. Vai aqui uma confissão pessoal – para mim têm sido os escritores ditos estrangeirados do século passado, os que fazem ou fizeram de outras fronteiras e vivências os seus referenciais humanos, e o próprio autor de O Memorial do Convento não aguentaria nos seus anos finais ficar limitado ao pequeno país português, que mais me comovem. Estas histórias de Dulce Maria Cardoso carregam em si essa condição, mesmo quando, como é frequentemente o caso aqui, o seu fundo são pequenas aldeias ou pequenos sítios escondidos algures no nosso interior nortenho, a memória ou a imaginação de cada personagem tornam-nos conscientes da sua condição isolada e solitária. A “impossibilidade” do amor será o que mais marca estas narrativas, duas delas baseadas em acontecimentos horrendos que tiveram lugar entre nós recentemente: “Desaparecida, ou a Justiça” e “não esquecerás”. É a nossa realidade, que por vezes nos parece mais ficção do que qualquer prosa, é o pior do país, os seus horrores de toda a natureza – crime, neglicência pública criminosa, solidão assassina; percebemos um povo, nestas páginas, reduzido  aos seus isolados, esquecidos e ignorados redutos serranos, vivendo na ignorância quase absoluta, na ausência de futuro ou de sonhos para além do ciclo da natureza, da luz e da escuridão.

Estas histórias surpreendem por muitas das suas qualidades formais e linguísticas, são transfigurações de vidas vividas ou espreitadas, nas quais nada foge ao conhecimento que cada leitor terá do seu próprio quotidiano. Toda a ficção contém sempre muito de autobiográfico, nesse sentido – ou experimentá-la em directo, ou então algo levou-nos a imaginar como seria a vida dos outros a partir de instantes na sua presença, numa frase dita ou lida, a catarse que será porventura toda a arte, originária tanto da necessidade pessoal do autor/a como de um chamamento moral que tem de ser emoldurado num quadro de fingimento artístico, mas tão concreto como se contivesse figuras, natureza ou abstrações num quadro pendurado. O seu dono ou apreciador vê, tem de ver, parte de si nessa representação. O “génio” de um escritor, também já escreveu alguém, é quando nos diz ou mostra aquilo que pensávamos ser só de nós, ou em nós. A ironia destes contos acontece a vários níveis: desde a observação minuciosa de narradores e narradoras, que nos parecem distantes e nos falam numa linguagem de certa dureza e a maior das vezes caracterizadas por um sentido humor muito próprio, cortante e penetrante, mas não podem ignorar a dor ou a decadência alheia, a morte anunciada de velhos fechados nos seus andares esperando o seu fim com a maior naturalidade imaginável. A mentira da ficção, aqui, contém as maiores e únicas verdades do nosso quotidiano, ou do quotidiano de outros que fazemos por ignorar. Representar a fealdade da vida foi sempre parte fulcral da história literária, e não só. Ninguém lê a partir de um vácuo ou na ausência do conhecimento de que é feito o nosso quotidiano, ou do que acontece na colectividade em seu redor. A literatura é ainda o meio principal de retomarmos ou repensarmos esse conhecimento, agora sem que a dor dessas representações nos paralise. Foi isso que Dulce Maria Cardoso já tinha feito no seu grande romance, O Retorno, no qual a raiva da História passou a ser como que humanizada, e no qual a redenção dos que haviam sido transportados caótica e cruelmente para fora da África de língua portuguesa dias após a nossa revolução de Abril foi transformada num dos mais humorísticos e ao mesmo tempo dramáticos textos  ficcionais da nossa literatura contemporânea. Tudo são histórias de amor transporta-nos para uma realidade que a escrita portuguesa desde há muito havia esquecido, e até denegria quando pensávamos que já éramos europeus só urbanos, sem passado nem vizinhos ou conterrâneos vivendo na mais calada miséria do continente. Nisso também, nessa disponibilidade para “recuperar” a vida nos nossos campos e serras, a autora é irónica, não ante a humanidade que nos retrata tão fulgurantemente, mas sim ao contrariar a pretensiosidade dos que fabricam páginas e páginas a imitar um existencialismo citadino nas várias aldeias que dão pelo nome de Lisboa. O “eu”, tão do gosto do escritor-intelectual citadino fechado na sua suposta torre-de-marfim e com saberes “privilegiados”, é aqui contradito, uma vez mais, em ironia fina e contundente.

“As minhas obsessões, – afirma uma das suas narradoras após ou durante uma sessão com um psicólogo de serviço – traumáticas, medos, manias não passavam de abismos que o psicólogo espreitava de lanterna em riste, tentando romper as sombras densas que aprisionavam o meu Eu… Uma pulsão destrutiva que me levaria a ficar fechada em mim, não fosse a enorme curiosidade que tenho pelo Outro, não fosse a enorme vontade de chegar ao Outro. Um Outro exterior. Não os Outros que também existiriam escondidos nos meus abismos interiores. O psicólogo garantia que esses outros Outros só me puxavam ainda mais para dentro de mim. Por vezes enredávamo-nos de tal maneira no meu Eu e nos Outros que era difícil percebermos do que falávamos”.

Se isto não é uma escrita cómica e de todo irónica, nenhuma outra palavra ou frase na nossa literatura o serão. Tudo são histórias de amor move-se, pois, entre “a cidade e as serras”, e a alusão aqui ao nosso outro grande mestre da ironia e da abrangência temática não é inocente da minha parte. O livro encerra com um texto deliciosamente intitulado “autobiografia ou a história de um crime premeditado”, em que a autora fala da saudade da sua infância e adolescência em África, e de como “matou” o seu outro “eu” para se tornar uma escritora, e não o que outros provavelmente esperavam que fosse a sua vida quieta e “tributável”, como diria o nosso primeiro génio da heteronímica modernista, e que também passou pelo mesmo continente, e lá recebeu a sua educação. Dulce Maria Cardoso diria numa entrevista há uns poucos anos que só muito recentemente começou a sentir um estado de “pertença” entre nós, décadas depois de regressar de Angola em 1975 como “retornada”. Uma advertência amigável por parte deste seu leitor – que nunca se sinta demasiado “pertencente” a uma “pátria” como a nossa. Como sabemos, até o seu governo actual sugere, sem ironia ou vergonha, que muitos de nós melhor faríamos se encontrássemos poiso no além-fronteiras, para que eles e os seus acólitos se sintam mais confortáveis, e menos culpados. O olhar  próximo e distante em arte — o Eu e o Outro – é o único que conta. Os restantes raramente enxergam clara e inteligentemente a sua própria rua, muito menos a alma dos que nela se cruzam.

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Dulce Maria Cardoso, tudo são histórias de amor, Lisboa, Tinta-Da-China, 2014.