A Europa real, e imaginada

 (…) Confrange-me ver os responsáveis portugueses passivos, ou pacientes, perante o actual padrão de construção europeia e à deriva diante de um comando directorial e até unilateral.
José Medeiros Ferreira, Não Há Mapa Cor-De-Rosa

/Vamberto Freitas

 Capa Medeiros FerreiraComecemos aqui pelo título completo do presente volume, Não Há Mapa Cor-De-Rosa: A História (Mal)Dita Da Integração Europeia. O (Mal) como prefixo entre parênteses faz toda a diferença, a sua polissemia, a sua semântica dupla, leva-me inevitavelmente a uma determinada interpretação ou leitura do texto completo que se segue. Tanto poderá significar uma história mal contada, como poderá querer transmitir a ideia de uma realidade ou estrutura que se tornou uma maldição, uma desfortuna, agora sem parênteses nem aspas, para uma sociedade ou para o país que é o nosso. O Prof. Doutor José Medeiros Ferreira é um grande historiador, mas é também um intelectual que nunca descurou o poder e a significação da literatura, o seu uso de qualquer palavra não vem por acaso. Qualquer leitura atenta e interpretativa desta outra narrativa levará, como acredito que o autor queria levar, o leitor à ambiguidade e ironia da história agora recontada. Para um dos arquitectos da nossa entrada na então Comunidade Económica Europeia, desde o nosso pedido em 1977, por ele próprio assinado, até à aceitação dessa entrada em 1986, numa cerimónia solene no Mosteiro dos Jerónimos, esse símbolo máximo da nossa grandeza e tragédia nacional, não deve ser fácil encarar o lugar actual de Portugal na dita União, o modo como a nossa mais grave crise financeira, assim como a de outros, está a ser resolvida ante e com uma Europa comandada, nas palavras do autor, de modo “directorial” e “unilateral”, a partir tanto de Bruxelas como de Berlim e dos seus aliados nortenhos mais próximos. Suponho que poderei adicionar aqui – e suspeito em Medeiros Ferreira a resistência um tanto mal disfarçada nestas páginas –  em simplesmente escrever “de modo ditatorial”. Lembremos que o autor de A História (Mal)Dita Da Integração Europeia foi Ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional desta Terceira República, e um crente — que havia estado exilado na exemplar Suíça — no regresso de Portugal ao continente europeu após o fim desejado das colónias em África, o que faz deste seu livro, creio, tanto um relutante mea culpa como uma justificação ou talvez ainda um acto de esperança no futuro sucesso e bondade do novo Sonho Português. Ele não se deve lembrar, mas lembro-me eu, que sou o aprendiz: aqui há uns bons anos em conversa informal na Universidade dos Açores e a propósito de uma queixa qualquer do nosso país ante Bruxelas dir-me-ia, a Europa até agradecia se Portugal se fosse embora, mesmo com uma compensação monetária. Estávamos bem longe dos dias de chumbo, de que também nos fala Eduardo Paz Ferreira num recente livro seu, que todos vivemos desde a chegada da Troika em 2011.

Esta Historia (Mal)Dita da Integração Europeia traça a ideia ou o desejo de uma Europa unida a partir da Primeira Grande Guerra para evitar mais holocaustos que os alemães, certamente com aquela ironia brilhante da sua melhor literatura de sempre, chamavam de “guerras civis”, sem dúvida dado a sua identificação com outros povos, etnias ou nacionalidades diferentes, e a sua histórica generosidade manifesta ante os seus vizinhos mais próximos, como a Polónia e a ex-Checoslováquia, e garantir do mesmo modo, nessa “união”, o suposto bem estar económico e social de todos. Comecei a leitura deste livro pela introdução, depois saltei logo para a última parte intitulada precisamente “Não Há Mapa Cor-De-Rosa (Sobre Portugal na Balança da Europa)”, retendo imediatamente dois breves passos, que para mim sublinham eloquentemente o resumo e as ambiguidades presentes do seu autor. Cito: “A oligarquia portuguesa foi europeísta com a mesma mentalidade acrítica com que fora colonialista até à exaustão”. Logo a seguir destaquei estas outras palavras, esta confissão entristecida: “Victor Cunha Rego… telefonou-me em 1999, a propósito de uma entrevista que eu concedera a Luís Osório, para me incentivar a estar atento aos sinais de um possível esgotamento do quadro comunitário para Portugal e fez-me uma exigência moral que não esqueço: ‘Está atento, quando vires que é necessário, defende a saída de Portugal da UE’”.

Tenho de confessar que o sei da Europa veio-me quase sempre através de livros anglo-americanos, muito particularmente sobre o período entre as duas grandes guerras, e depois sobre a Segunda Guerra Mundial. Muito pouco, pelo menos no que eu escolhia para ler, se escrevia sobre a história da tentativa ou vontade de se criar uma União Europeia, e muito menos ainda sobre a possibilidade eventual de uma moeda própria. A partir dos anos 80, pouco antes de eu regressar aos Açores, lembro-me de ter lido um artigo de opinião do jornalista conservador e republicano George F. Will, no qual  ele questionava se União Europeia era ou não um projecto viável, e rematava sorrateiramente com todo o seu chauvinismo anglo-saxónico – que tinham a ver os holandeses com os portugueses? Na altura, a minha reacção silenciosa era a habitual – e que sabes tu da Europa ou do meu povo, e já agora, dos holandeses?

Ironicamente, já a residir de novo nos Açores, as doze estrelas numa bandeira de fundo azul por todo o lado quase se tornaram para mim uma irritação permanente. De boca bem fechada, eu ouvia alguns a dizer que a América é agora aqui. Até o meu amigo Onésimo Teotónio Almeida me dizia que eu tinha tido muita sorte, pois havia encontrado o Eldorado duas vezes. Lembro-me de que na altura, para descarga puramente catártica, escrevi numa das minhas crónicas do Açoriano Oriental que para nós aqui nas ilhas seria sempre o mesmo, dado a história do nosso relacionamento com o Novo Mundo – algibeiras abertas e viradas para a Europa, coração para América. Hoje tenho muita pena de voltar a ver que a nossa gente procura uma vez mais a sua salvação e regeneração nas Américas, os mais novos e vulneráveis querendo, tal como a minha geração, sair daqui por qualquer meio ao seu alcance, com menos futuro do que aquele que tínhamos ou vislumbrávamos nos anos 60 e 70. No dia em que finalizei este texto, lia no mesmo Açoriano Oriental este título e resumo de um artigo: “Projecto solidário retoma tradição dos barris da América/’Irmão Solidário’ vai receber localmente e também de Fall River para serem distribuídos pelas famílias mais pobres de Ponta Delgada”. Quando leio agora José Medeiros Ferreira sobre a história convulsa da nossa integração na Europa, deduzo de imediato que a ambiguidade do nosso quotidiano e do nosso destino permanece exactamente como sempre foi.

Não Há Mapa Cor-De-Rosa: A História (Mal)Dita da Integração Europeia foi para mim como que um seminário completo em volta do andamento do continente europeu sob fogo ou em paz periclitante. Os capítulos que antecedem a Segunda Guerra Mundial e depois as conversações entre os líderes aliados sobre o nosso futuro arrepiam-me quase tanto como o que discutiam os poderes do Eixo. Leiam com muita atenção um discurso de Joseph Goebbles sobre a Nova Ordem Europeia, proferido numa conferência de intelectuais checos a 11 de Setembro de 1940. Escreve José Medeiros Ferreira: “Um ano depois são dadas instruções [na Alemanha] para se apresentar à imprensa razões positivas sobre uma possível confederação ou federação europeia”. Uns poucos anos mais tarde, ouvimos Mendés France, distinto democrata francês, a temer que uma certa “União” quereria possivelmente significar que os países “socialmente conservadores” — ou seja, nós no Sul — iriam como que sugar os recursos sociais dos mais ricos. Aliás, um dos sub-temas recorrentes neste livro é precisamente a contínua desconfiança do Norte perante o Sul. Ouviram durante estes últimos três anos a retórica saída de Bruxelas e de Berlim, ou até da Finlândia ou mesmo de Londres?

Não tenho qualquer dúvida, após a leitura desta História (Mal)Dita da Integração Europeia, que José Medeiros Ferreira continua a ser um europeísta mais ou menos convicto, passe o paradoxo. Só que, ao contrário de outros que sabem mas não dizem, ele expõe-se nestas páginas com todas as suas dúvidas sobre o nosso rumo actual. Quase a dizer – se continuamos assim por mais tempo, se os nossos governantes não levantam a cabeça ante os nossos supostos “parceiros” e o nosso orgulho nacional de uma negociação digna de uma velha nação, mais valia a Jangada de Pedra iniciar a sua nova viagem de descoberta.

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José Medeiros Ferreira, Não Há Mapa Cor-De-Rosa: A História (Mal)Dita da Integração Europeia, Lisboa, Edições 70, 2013.

Nos vinte e cinco anos de Gente Feliz Com Lágrimas

Capa Gente Feliz Com L+ígrimasE onde descrevi a ruína e a sombra destas paredes, erguerei janelas que se abrirão para o sol da manhã.
João de Melo, Gente Feliz Com Lágrimas

Para a Adelaide, com uma lágrima de saudade

/Vamberto Freitas

 Quando da publicação da primeira edição, em 1988, de Gente Feliz Com Lágrimas eu residia algures no sul da Califórnia, tinha uma vida estável e satisfatória em tudo que nos traz a felicidade possível, resumia os meus dias a dar aulas e a escrever para o Diário de Notícias. Tinha começado a escrever sistematicamente sobre as literaturas norte-americana e açoriana para o suplemento então chamado simplesmente Cultura do diário lisboeta, o que me obrigava a estar atento ao melhor que no nosso país se ia publicando com os Açores como referência principal. Nas mais improváveis situações de vida, os livros também se podem tornar parte íntima de nós, quer por amizade ao seu autor quer por acontecimentos nas nossas vidas, que, sem sabermos ou suspeitarmos, nos continham a nós próprios nas suas páginas em representações que mesmo em sucessivas leituras nos parecem naturalmente distantes dos nossos próprios percursos, os mundos reinventados de outros, a ficção como acto artístico que nos poderá falar directamente, mas deverá permanecer sempre exclusivamente como referência identitária só na nossa capacidade intelectual de sentirmos a pertença a uma comunidade agora tornada imaginária, da qual já nos havíamos desligado ou dela nunca havíamos feito parte geograficamente, restando só a memória de uma cidadania quase só sentimental. Com este romance de João de Melo tudo se transformaria, a minha aproximação ao texto, por assim dizer, viria a ser desusada, tomaria contornos demasiado pessoais e emotivos.

Conheci João de Melo pela primeira vez num dos Encontros de Escritores Açorianos, aqui em São Miguel, mais ou menos um ano depois de Gente Feliz Com Lágrimas ter sido publicado e já então largamente comentado e premiado. Nunca sobre ele tinha escrito uma palavra, pois como eu diria dali a pouco num ensaio do Diário de Notícias, a sua escrita intimidava-me como poucas, particularmente a de O Meu Mundo Não É Deste, o antecessor do romance hoje em foco. Só que nesse mesmo Solar de Lalém da Maia, eu conheceria alguém que derrubaria esta e outras barreiras literárias em mim, tal como eu derrubaria as dela – uma mulher que então se chamava Adelaide Batista, e hoje chama-se Adelaide Freitas. O meu regresso a casa, como já disse noutra parte, iniciar-se-ia em breve. Mais do que isso, Adelaide tinha sido vizinha e amiga de João de Melo na Achadinha, que viraria Rozário em muita da obra deste autor. Doutorada em Literatura Norte-Americana, Adelaide estava já virada também para a Literatura Açoriana contemporânea, e dentro desta muito afincadamente para a obra do seu conterrâneo e vizinho, que eventualmente resultaria no primeiro livro de ensaios sobre a obra do autor de Gente Feliz Com Lágrimas, intitulado precisamente João de Melo e a Literatura Açoriana, publicado pela editora D. Quixote, em 1993. Estávamos ainda numa época em que nomear assim a nossa literatura mais parecia ante muitos outros uma espécie de criminalidade literária e cultural, o que não inquietava ou comovia a Adelaide minimamente. Seria ela, quando nos conhecemos na Maia e em pouco iniciávamos uma rica e intelectualmente frutífera vida em comum, que preencheu por completo os meus dias em tudo, a literatura dos nossos afectos uma constante na nossa casa, a escrita e a conversa imparáveis sobre os nossos projectos, com João de Melo e toda a sua obra até àquela data figurando num centro especial para nós os dois. Eventualmente eu escreveria vários ensaios sobre o autor nosso amigo, mas ela escreveu muito mais e melhor. Só mais uma palavra sobre a Adelaide no que se refere à obra de João de Melo – foi ela que colocou O Meu Mundo Não É Deste Reino nas mãos do seu antigo professor na City University of New York, e seu grande amigo até hoje, Gregory Rabassa. Não vou repetir aqui o que o grande mestre da tradução nos Estados Unidos diria sobre o romance numa carta que depressa nos enviava, basta relembrar que My World Is Not Of This Kingdom seria mais tarde publicado naquele país, e objecto de apreciações várias.

“O valor da obra de João de Melo – diria ela no extenso ensaio intitulado “A Miticidade em João de Melo” e incluído no seu já mencionado livro – deriva da riqueza do seu potencial significativo. Ela não vale pelo que diz mas pelo encerra; não tanto pelo que revela mas pelo que potencializa (…), cuja ontologia encontra expressão numa linguagem mítica. Uma linguagem dialógica, de tensão interna, para a qual concorrem as vozes e o estilo, o discurso, as disjunções subtis do tempo e do espaço, as personagens, o ponto de vista, etc., tudo num jogo livre de aproximação e rejeição, com vista à dramatização entre um número variado de sentidos opostos: o indivíduo e a sociedade, o homem e a natureza, o interior e o exterior, o passado e o futuro, e todas as oposições existenciais nos seus diversos códigos analógicos. Nesta dinâmica se movem todas as placas giratórias, garante fundamental da força e organicidade textual e narrativa, que dá suporte a uma miticidade que, clarificando a cultura, a prepara para o seu desenvolvimento e para outras manifestações. Trata-se, com efeito, de um verdadeiro hino à esperança, à tenacidade e sobrevivência de um povo, que é dos Açores como de outro qualquer lugar do mundo”.

Nestes vinte e cinco anos de Gente Feliz Com Lágrimas muitas outras lágrimas já escorreram, mas o “hino à esperança” de que falava a autora de Sorriso Por Dentro Da Noite, mantém-se – tem de se manter. A “realidade” transfigurada em Gente Feliz Com Lágrimas parecia-nos uma estória de um tempo ido, a memória, sempre, da miséria e do desespero do povo português, aqui e em todo o país, da nossa procura incessante pela nossa própria regeneração e salvação, rumo a novos mundos mais abertos, que não o que nos haviam legado desde a fundação da pátria. A esperança, uma vez mais, permanece – mas Gente Feliz Com Lágrimas torna-se agora um clássico actualizadíssimo, como aliás são todos os clássicos. Não estamos nos anos 60, mas estamos de novo nas mesmas ausências e desespero – famílias com fome, jovens desesperados por um futuro que de novo lhes é negado, um sistema político de todo insensível, frio e protector exclusivamente de uma outra elite que, tal como nesse passado ainda da nossa memória magoada, parece tratar de si e só de si, e ainda volta a prescrever descaradamente o remédio português de sempre – emigrem, literalmente dito por alguns deles, “abandonem a zona de conforto” rumo a outra Europa, ou ao Novo Mundo. A grande ficção nunca tem de ser justificada pela chamada “realidade”, no seu melhor é uma tirada artística, um “retrato” de um lugar e de um tempo. No nosso caso, desgraçadamente, é sempre esse lugar e esse tempo que reconfirmam a nossa arte literária, desde há séculos, numa perversão de todas as nossas vontades e sonhos. Gente Feliz Com Lágrimas é uma grande obra de arte, não precisava de nada disto, só da nossa memória e capacidade imaginativa, do nosso gosto pelas, e apreciação das suas linguagens simultaneamente de beleza pura e, sim, dureza realista. “Tudo para o ilhéu – citava ainda a Adelaide o autor de nome Vitorino Nemésio noutro texto – se resume em longitude e apartamento. A solidão é o âmago do que está separado e distante”.

O que me leva aqui a outra afirmação sobre Gente Feliz Com Lágrimas – trata-se também, para mim sem qualquer dúvida, do primeiro grande romance de um escritor português e açoriano sobre a nossa imigração na América do Norte. Por certo que antes de João de Melo já existiam os escritores imigrados e luso-descendentes nos EUA, mas falo de um escritor que teve a capacidade e sensibilidade literária e intelectual de olhar e de facto ver o que nos acontecia num grande país a norte naquele continente, o Canadá, essa outra pátria nossa a partir de meados do século passado. Houve sempre a tentação por parte dos nossos escritores açorianos residentes, até há bem poucos anos, de olhar para os nossos imigrantes através de uma espécie de atrevimento desumanizante. Não tinham vida interior, pouco mais sabiam do que a sua linguagem despedaçada. Com João de Melo passamos dessa unidimensionalidade para seres humanos reinventados em toda a sua complexidade e, sim, inteligência. Tudo isto faz parte da grandeza de Gente Feliz Com Lágrimas.

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João de Melo, Gente Feliz Com Lágrimas (23ª edição), Lisboa, D. Quixote, 2013. Este foi o texto de apresentação da edição comemorativa dos vinte e cinco anos do romance numa sessão com o seu autor na Livraria SolMar.