Do intelectual público no nosso tempo – II

Eu sempre me pensei um patriota e sempre tive, no passado, a preocupação de comparar favoravelmente os Estados Unidos com a Europa e com a União Soviética; mas o nosso país tornou-se agora um gigantesco poder desatinado e controlado mais e mais por burocracias cujo governo está cada vez mais difícil de justificar numa tradição de individualismo americano; e porque não posso aceitar este poder ou estes propósitos ou os seus modos de o financiar, tenho finalmente sentido que este país, quer eu continue a viver nele ou não, já não é para mim.

Edmund Wilson, The Cold War And The Income Tax: A Protest.

Vamberto Freitas

O que é para mim, hoje, um “intelectual público”, eu que sou um cidadão português a viver numa pequena ilha açoriana, docente da Universidade dos Açores, ensaísta literário, ou apenas um mero comentador de livros num jornal de circulação e influência regional? Digamos que a primeira aprendizagem vem de longe, vem de professores norte-americanos, como Michael Holland, um dos últimos new critics a princípio dos anos 70 numa faculdade californiana, mas muito especialmente de um autor que faleceu em1972, e que eu conheci só através dos seus livros, e muito cedo. Ter lido o seu póstumo Letters on Literature and Politics 1912-1979 foi mais do que uma descoberta, foi um encontro decisivo sobre a importância, sobre a elegância e sobretudo a relevância do discurso público e privado sobre a literatura como documentação de um tempo e de uma cultura no contexto histórico em que acontece. Por certo que é um discurso informal e privado, esse das suas cartas dirigidas aos mais conhecidos autores nacionais e internacionais, especialmente os britânicos. Só que as ideias, opiniões e confissões aí expressas vão muito além de um só interlocutor, dizem o que um e qualquer leitor quer ouvir e aprender: a importância da palavra e a seriedade intelectual e de cidadania. Nunca mais fui capaz de ler um livro do mesmo modo, fosse ele de prosa fictícia, de poesia ou de carácter biográfico ou autobiográfico, ensaísmo ou crítica literária pura, ou mesmo uma de mera escrita circunstancial numa periódico generalista, como a revista Vanity Fair, ou na deliciosamente elitista The New York Review of Books, ou ainda na The New Republic, revista erudita onde ele acabaria a sua carreira, lugar que só George Steiner viria a ocupar depois da sua morte. Edmund Wilson era muito mais do que um ensaísta literário, era sobretudo um cidadão em busca das origens da tragédia humana, quer fosse individual, nacional ou internacional .

A certo momento da sua carreira, especialmente a partir dos anos 40, decide que tinha já dito tudo o que queria dizer sobre o modernismo literário europeu (Axel’s Castle: A Study in the Imaginative Literature of the 1870-1930) e norte-americano (e aqui nos mais variados livros de ensaios, em que sobressaiem A Literary Chronicle: 1920-1950 e A Literary Chronicle Of The Forties), indo ainda em busca da vida e das tradições culturais de minorias dentro e fora do seu país, desde Apologies To The Iroquois, uma tribo nativo-americana do norte do estado de Nova Iorque sob ataque no seu território sagrado com a construção de projectos de suposto desenvolvimento económico, a The Dead Sea Scrolls 1944-1969, a história primitiva da cristandade através da vida dos Essênios, tentando demonstrar a dignidade, valor artístico e lugar histórico na modernidade que marginalizava e esquecia essas nações isoladas num mundo que já se anunciava perigoso e demasiado mecanizado. Viajaria ainda para as Caraíbas à procura da vida e obra dos irmãos Philipe Thoby-Marcelin e Pierre Marcelin, prefaciando a edição de língua inglesa do romance All Men Are Mad. Antes de tudo isso, nos anos 30, fica aterrorizado com a Grande Depressão, e sai pelo país fora em busca dos caídos e oprimidos, publicando de seguida uma colectânea de textos com um título pouco comum e de aviso aberto aos seus leitores – The American Earthquake. A determinada altura, nos anos 50, decide não pagar durante cinco anos nem mais um cêntimo de impostos ao governo federal pelos gastos que este fazia em armamentos para futuras guerras, e muito particularmente pelo início da sua intervenção no Vietname. É chamado pela Internal Revenue Office (IRS), condenado a pagar tudo com juros, o que, se o tivesse feito, condenava-o a uma penúria quase absoluta, e por isso foi aconselhado vivamente pelo seu advogado a abandonar para sempre o pais. Em em vez disso, Wilson escreve um dos seus mais “públicos”, polémicos e condenados livros, The Cold War And The Income Tax: A Protest. Nessa precisa altura, John F. Kennedy convida-o à Casa Branca para lhe conferir uma Medalha de Mérito e almoçar com autores nacionais e internacionais, contra uma tentativa de intervenção do FBI. Respondeu Kennedy: estou a condecorar o grande intelectual e o não “o bom cidadão”. Pouco depois, Gore Vidal recenseava o dito livro, condenando Wilson, mas ressalvando-o brilhantemente com as seguintes palavras: “Isto constitui – escreveu Gore Vidal, também na linguagem claríssima de um cidadão sem medo, e consciente das tradições fundacionais e políticas do seu país – uma acusação formidável a nós todos. Edmund Wilson é o nosso mais distinto homem de letras. Ele tem sido sempre (mesmo que os burocratas não saibam) o grande defensor cultural da América e um American Firster. Perder um homem destes é um sinal que a nossa sociedade está a entrar numa zona de sombras que, uma vez atravessada significa, acima de tudo, a derrota que os nossos pais fundadores queriam para um novo país onde a felicidade seria desejadamente procurada. Mesmo assim, o panfleto sombrio de Wilson poderá ser o abalo exacto de que necessitamos”.

Wilson, nos seus últimos dias de vida, folheava, creio, a revista Life, e dizia que já não se reconhecia nesse país, aí alegre e glamorosamente retratado. Aliás, como já escrevi noutros contextos, Wilson também viu um dos seus últimos filmes, The French Connection, arte cinematográfica de que ele nunca tinha sido fã, pois não se esquecia que o seu grande amigo F.S. Fitzgerald e colega em Princenton tinha perdido ingloriamente a vida numa Hollywood que ele, uma vez mais, nunca respeitou, e muito menos admirou. Imaginem se ele estivesse a viver a América dos nossos dias. Sobre o dito filme, a que o tinham levado a ver sem ele pedir, diria simplesmente “Bang, bang”. Nada mais.

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Edmund Wilson, The Cold War And The Income Tax: A Protest, Straus, Farrar And Company, 1963.

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