Subindo aos céus, sem rede

Capa Anthony de S+íFoi o verão em que ninguém dormiu. Durante a última semana pegajosa de Julho, o ar abandonou-nos, sem brisa corrente nas nossas ruas e nos nossos becos tortos.
Anthony De Sa, Kicking the Sky

/Vamberto Freitas

 O primeiro romance do luso-canadiano Anthony De Sa intitula-se Barnacle Love, que no nosso país levou na capa Terra Nova (Dom Quixote, 2009). Tinha tudo a ver com a nossa imigração açoriana no país do autor, a sua transfiguração de como pais micaelenses (Lomba da Maia) haviam deixado a ilha a meados do século passado para reconstruirem as suas vidas, juntamente com milhares de conterrâneos seus de todas as ilhas, na que viria a ser uma das grandes comunidades da Diáspora lusa na América do Norte. O narrador era precisamente um desses seus filhos, a segunda geração a braços com a sobrevivência entre duas línguas e duas culturas, quase sempre antagónicas apesar da pregação de um suposto universalismo lusitano, capaz de tudo e de todos absorver num novo ser ou cidadão. Amor de lapa, a terra ancestral continuamente em chamamento e a condicionar um quotidiano que com as ilhas, agora, só teria a ver com a memória e a saudade, aliviadas com um copo de vinho de cheiro ou caseiro (a uva trincada secretamente numa garagem onde também se pendurava um porco às escondidas), um chouriço, as festas religiosas muito açorianas, e o cheiro das cozinhas nas caves das casas mais ou menos humildes dos que estavam e estão condenados a viver dos seus braços e das contingências de toda a ordem que marcam, agora sim, universalmente a experiência de todos os “exilados”. Esta geração de escritores luso-descendentes não tem paralelo nem nossa história nem nossa cultura literária, aqui ou no além-fronteiras, dando conta de si através da arte, redefinindo em língua inglesa, no Canadá e ainda mais nos EUA, o nosso destino nas terras distantes, eliminando a geografia ao insistirem no passado dos que lhes deram vida, abraçando na sua escrita e sem complexos a sua condição de cidadãos hifenizados. Literatura canadiana ou norte-americana? Sim, estão integradas canonicamente na sua tradição muito própria. E depois de traduzidas para a nossa língua, com as suas imagens, metáforas, referências históricas e terminologia e ditos portugueses em itálico no inglês original? A desterritorialização, ou mesmo a desnacionalização, da literatura está em curso há várias décadas, as línguas já não têm pátrias — têm falantes, que nosso caso espalham-se literalmente pelo mundo inteiro.

Estas considerações vêm naturalmente a propósito do segundo romance de Anthony De Sa, recentemente publicado no Canadá, Kicking the Sky (“subindo aos céus”, na minha tradução), que tanto dá continuidade à sua prosa e temática anteriores como parte para outros e bem mais dramáticos (e cómicos) territórios da mente e do coração. Baseado num caso verídico acontecido em Toronto em 1977, parte do assassínio de um adolescente engraxador açor-canadiano (“the Shoeshine Boy”) de nome Emanuel Jacques envolvido com a alguma homossexualidade num bairro da cidade (o romance não tem nada de homofóbico, pelo contrário) para nos levar pelos mais isolados e deprimidos becos num bairro maioritariamente luso, a narrativa de outro adolescente, Anthony/António Rebelo, que olha de novo para esse destino de pais da primeira geração imigrada, de linguagens despedaçadas, de vizinhos e amigos entalados entre os seus dois mundos luso-canadianos, a ambição esbatida de alguns dando também lugar ao desespero dos seus filhos. Nunca nada assim tinha sido escrito por um luso-descendente: a mítica do nosso suposto triunfo (que é sempre de poucos, e nunca da maioria) lado a lado com a tragédia e a solidão dos que estão sem pertencer inteiramente, da essencial rebeldia da geração seguinte em busca de um lugar e da felicidade prometida. A primeira condição comunitária revelada em Kicking the Sky é um agudo sentido da claustrofobia de um bairro marginal, e onde convivem a desilusão no amor em casa e na rua comunitária com o sonhado sucesso profissional que parece vedado a esta gente, uma vida dominada inteiramente ou pelo trabalho insano ou pela aceitação da pobreza camuflada. O único “canadiano”, James, que vemos e ouvimos durante quase toda a narrativa é um outro marginal a viver numa garagem de bairro entre os portugueses, e a chular os adolescentes em sua volta. A morte violenta de Emanuel que dá unidade firme a esta narrativa acontece logo de início, e ainda sem sabermos que era de facto quase inevitável. O que passamos a perceber é que essa morte rondava constantemente os amigos sobreviventes, quase todos dedicados aos pequenos roubos e tráfico de drogas, ou então passeavam-se nos bairros do sexo comercial, por assim dizer, a vender sem prazer um corpo em busca de alguma recompensa monetária. De resto, espreitamos aqui o perigo quotidiano destes jovens, nunca esquecemos a solidão entre homens e mulheres adultas que ritualisticamente pretendem a felicidade de uma vida estável na cidade dos seus sonhos.

A lapa anda de novo por aqui, agora constantemente dita em português, e no inglês caiu barnacle para dar lugar ao nome mais popular de limpet. O seu simbolismo de apego ao passado ancestral por parte do protagonista-narrador e dos seus é ainda mais forte: António/Anthony, aqui aos doze anos de idade, come-as cruas como se na Lomba da Maia tivesse nascido e sido criado. Só que um dia, com a concha na mão, dá-se um jogo de luz reflectida, e ele julga que viu claramente uma figura de Cristo, parecendo, já se sabe, um Santo Cristo. Quando o pai descobre o “milagre” e a “revelação”, não tem meias medidas: anuncia tudo no bairro e passa a abrir a mesma garagem da sua casa onde prime uvas para o seu vinho, passando de imediato a receber gente vizinha, e não só, a pedir a bênção do filho, à procura de curas e paz, e, pensava ele, melhorando a sua situação financeira com as dádivas deste crentes. António fica sentado na garagem como uma espécie de Buda da Cristandade em frente de todos, vestido com  uma capa vermelha sobre os ombros e ornamentada a cores de ouro (fala memória…), até que o pároco português local põe cobro a tudo, como sempre se encarrega a Santa Igreja, que não admite concorrência nem pregação fora do seu alcance. Acontece em Kicking the Sky o que dificilmente acontece num romance, e que nem sempre funciona, ao contrário do que vai nestas páginas – drama e comédia, nos mesmos personagens, nos mesmos incidentes, na mesma ambiência inventada numa geografia precisa. Recordemos que a nossa comunidade em Toronto é uma das pouquíssimas que está inserida numa grande e rica área metropolitana hiper-moderna, mas insistindo sempre na sua vida própria, pré-definida durante longos séculos em pequenas ilhas isoladas no fantasmagórico Atlântico, as luzes da cidade no grande continente quente e frio brilham, mas ao longe e aparentemente só para outros. Todo este vasto e simultaneamente pequeno mundo é visto através dos três adolescentes açor-canadianos, o narrador, Manny (ladrão de bicicletas que vende por encomenda de outros e para uns poucos dinheiros na algibeira), e Ricky, o mais trágico deles, vivendo só com o pai alcoólico abandonado pela esposa que desde há muito tinha regressado a São Miguel. Eis aqui um dos nossos primeiros repatriados, que encontra a paz e o bem estar na ilha dos seus antepassados. Ironia, sim, brilhante e redentora. Deixou o Inferno para aqui na ilha “subir ao céu” na companhia da única pessoa que lhe poderia amar e proteger. Numa carta a António escreve que agora se levanta e tem um almoço à sua espera.

Kicking the Sky pode por vezes ser uma viagem literária mais ou menos deprimente, mas creio que o seu autor não só encontrou a sua voz muito própria, como manipula com destreza sábia as suas linguagens. A tensão por dentro desta narrativa está equilibrada pelo humor e tantas vezes pela ingenuidade e sabedoria de adolescentes, já velhos na vida pela sorte e experiência que lhes coube. Desmitifica aqui a ideia da felicidade absoluta que os nossos tradicionais relatos da imigração na América do Norte nos impunham, quase sempre falsamente. Sexualidade transgressora e condenada, conflito familiar, descrença na bondade da Terra Nova. O romance de Anthony De Sa integra-se nessa grande tradição artística novo-mundista – a perda da inocência, o confronto com a “realidade”, o saber que pouco do que dizem os adultos faz sentido ou é verdade. Entre a fantasia e a realidade, fica o essencial – a vida na sua completude feia e bela, no amor e na tragédia, entre o choro e o riso.

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Anthony De Sa, Kicking the Sky, Canada, Doubleday Canada, 2013. Todas as traduções aqui são da minha responsabilidade.

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